Arquivo da categoria: Lápis e Borracha

Bliss

Admiração em teu jeito de ser. Fascinante, livre, sadia, segura, confiante.

Como não almejar tais qualidades e ser como és? Parece-me tão artificial.

Nada a ti é superficial. Vejo teu rosto cheio de brilho, tão cheio de teu ser, tão vívido, tão fúlgido. Similar ao divino em terras perdidas, livre em uma grande ilha. Toca o céu com seus olhos azuis, mais brilhantes que o gigante azul de paladar salgado.

Tua felicidade não se finda. Tua paz exala por quilômetros de raios. Todos querem ser como a ti. Todos querem essa paz.

Ser tão bondoso que conhece apenas a paz, a alegria, a esperança. Busca nos viventes o mais oculto dom de bondade. Sabes que todos são capazes de uma vida calma e generosa. Sabes que a capacidade pertence a cada corpo, mesmo que lhe pareçam tão intangível. Sabes que todos são belos aos olhos de quem vê.

Brigas? Invejas? Não há dia ruim. Se há fúria no coração de outrem, rebate com uma tranquilo tom vocal, paciente e doce. Teus vocábulos proferidos como um canto em que desejo adormecer nesta paz sonora. E continuar a viver como um sonho. Um sonho que produziste em meu ser. Uma paz. Uma natureza de belos pássaros cantando sobre mim.

Raiva? Próximo a ti é apenas sentimento fantasioso, em livros de vilões existentes apenas em nossa imaginação. Tua alma não consegue odiar nem o mais bruto dos seres. Encontras a paz no espírito de cada. Dialogas, ouves, atribuis a cada problema uma solução. Convertes a maldade em luz, as trevas em compaixão, a solidão em solidariedade.

Admiro. Desejo ser como és. Não por inveja, mas para encontrar meu melhor ser. Ser melhor é o que pretendo ser. E reconfortar pobres almas que também já desistiram de ser luz nesse mundo de escuridão.

Indicado por: Marcelo Loriano

Wonderful Life

Um banquinho, um violão, um dia ensolarado ao lado de tantas árvores. Ventava, não muito forte. Um amigo a quem devo tanto. Momentos incríveis. Amizade, sentimento forte. Sinceridade, respeito, confiança. Cumplicidade. Quando se pode contar com alguém.

Uma frase define: “Alguém que sabe todos os seus defeitos, mas que sempre estará próximo.”

Amizade não define cor, credo, política, sexo, distância ou opiniões. Amizade não se explica, sente-se. Amizade é isso. Somos nós. Somos você e eu.

Agora feche seus olhos, ouça a canção que lhe dedico. Nada define o que vivemos. Não seria a mesma coisa com outra pessoa. Não teria o mesmo significado, nem a mesma força. Momentos simples que se tornam tão boas lembranças. Momentos que não gostaria de ter com outro alguém.

Sei que pode me ouvir com o coração, onde quer que esteja, pelo que quer que esteja passando. Vê-me a seu lado? Sim, estou aí, olhe bem. Sempre estarei. Sente-se só? Sente-se assustado? Estou aqui para lhe dar o ombro.

Compartilhar, palavra tão pouco usada, mas tão bem praticada. Lembra-se das gargalhadas? Das raivas? Dos sucessos? Das tristezas? A companhia se fez luz e destruiu a escuridão que nos ladeava.

Bastava um aperto no peito e uma ligação para ouvir, com voz distante, de coração definhado, a me dizer: “Preciso desabafar” e eu iria correndo. Era uma troca justa: uma lágrima por um sorriso. No final das contas, tudo havia valido e nada entre nós transformava-se em dívida.

Fora um sentido “a mais”, algo que valeria a pena prosseguir. Quando um buraco sob meus pés se abria, você estendia suas mãos para me tirar dali. Era imperdoável sentir-me assim.

E agora, nosso caminho se bifurca. Cada um com seu próprio destino, seus próprios sonhos. O mesmo olhar distante que se encontra pela última vez, prestes a partir. Um violão sem mais afinação, que será tocado apenas com uma mão. Uma canção de uma nota só.

O que aconteceu? Não deveríamos ser uma dupla? Vozes em harmonia? Por que tem que ser assim? Não sei, mas não há o que fazer. Era hora de seguir sem olhar pra trás. Serão lembranças a partir daqui. Um tempo bom que não se regressará.

Adeus, velho amigo. Espero que trilhe por bons caminhos. Desejamos bem a quem nos queira o mesmo e sei que conto com essa tal reciprocidade. Viva bem. Só lhe peço que jamais me esqueça, pois, onde quer que esteja, sempre haverá alguém para se lembrar dessa amizade, não importa quanto tempo passe.

Sou grato pelos maravilhosos dias que passamos. Jamais te substituirei, pois sei que nossos caminhos cruzar-se-ão no mais tardar.

O Outono e a Saudade

Sozinha. É assim que prefere estar?

Pelo tempo em que estivemos juntos, apeguei-me a você. Você sempre foi tão linda, tão doce. Eu me apaixonei depois de um tempo, ao ver seu sorriso todos os dias, poder acordar e ver seus longos cabelos espalhados pela cama. Aquele doce frescor quando você saía do banho. Era a razão da alegria de todos os meus dias árduos e cansativos.

Eu te amei e continuei te amando de tal forma que jamais pudesse me imaginar com outro alguém. Acostumei-me a todos os seus defeitos, àquela rotina, às vezes chata, às vezes tão divertida. Fizemos grandes planos, tivemos nossos filhos, nossos cachorros.

E esse sentimento não se foi. Continuo a te amar e continuarei até que meus dias se findem, mas isso não parece ser o suficiente. Toda aquela primavera, de amores inocentes, passando pelo verão quente e excitante, chegou ao outono, onde tudo começa a se esfriar. E agora sinto que devo partir.

É essa a realidade que você quer para nós? Completava-te da mesma maneira que você a mim e isso me fazia tão bem. Quero te encher de esperanças, mas não posso me tornar algo insistente em sua vida. Se é como queira, devo partir.

Você diz que sempre cuidou de mim, mas não quero saber só desse passado. Quero que cuide no agora e no futuro, até ficarmos velhinhos e nos despedirmos para o mais além. Você diz que sempre me amou, mas uma pessoa não é capaz de amar a outra sem nunca ter se amado. Você diz que nossa hora chegou. Nosso amor era apenas um tempo pré-determinado?

E agora? Para onde vou? Quem curará suas ferias quando eu partir? Quem te roubará dos braços da solidão quando aos prantos vocês cair? Quem te fará erguer-se quando de joelhos não se permitir sair? Quem lhe dará forças? Quem lhe aliviará de todas as dores?

Se devo partir, o farei. Deixo nossas lembranças e levo comigo uma eterna saudade. Não se arrependa de tal decisão, pois breve poderei estar nos braços de alguém, para cuidar-lhe das feridas. Espero que fique tudo bem.

Foto de Guillaume Meurice no Pexels

Gravedigger

103 anos. Sinto ser este o meu último na Terra. Quem sou eu? Apenas mais um coveiro. Um coveiro que já viu o bastante nesta vida. Agora chegou minha hora, chegou minha hora de partir.

Já vi mães enterrarem seus bebês. Uma mãe que, lamentavelmente, perdeu seus dois filhos na Segunda Grande Guerra. Aquela guerra que, sem quaisquer motivos, matou tanta gente que não tinha nada a ver com os interesses daqueles que se nomearam nossos líderes.

É normal uma mãe ser enterrada pelos filhos, mas o contrário é inaceitável. Eu via dor em seus olhos. Os garotos levaram consigo as lágrimas maternas desesperadas por uma lastimável situação. Quanta dor. Ninguém naquele velório era capaz de expressar o que ela sentia.

Essa mulher, pobre, órfã, perdeu seu marido na guerra, perdeu seus filhos pela guerra. Sua vida era, agora, uma guerra perdida. Aquela dor não se transformava em rancor, não conseguia.

Ódio de quem? Do exército? Da guerra? Dos líderes. Quem ela poderia culpar? Era aquela uma situação sem culpados? Ou seriam culpados com motivos pífios? Por que eu sinto aquela dor e não posso ajudá-la? Será que também tenho culpa de fazer parte daquela realidade?

Vejo uma mãe sofrer e que posso fazer por ela? E o que ela poderá fazer de agora em diante? Estava só, estava confusa, seu coração estava partido. Seus filhos jamais voltariam.

A morte é algo intrigante, que te leva sem dor, sem piedade, sem arrependimentos. Basta um minuto distraído e ela te leva, sem destino.

E agora, me despeço. Depois de fazer parte de histórias como essa, deixo aqui meu legado. Quantos já enterrei? Não sei, mas agora chegou minha hora de ser enterrado. Encontrarei essas crianças e tantas outras pessoas para onde vou agora. Talvez.

Só peço que me enterrem a menos de meio palmo da terra, para que quando chova, ainda possa sentir as lágrimas dessas crianças, desses jovens e de todas as outras pessoas que um dia eu enterrei. Tantas, sem motivo algum.

> Indicado por: Marcelo Loriano

Roads Untraveled

Deparo-me com um amigo, deitado às sombras de uma grande macieira, olhos vermelhos, lágrimas no rosto. Ignoro meus problemas por um instante, pois este precisa de mim. Ele fora machucado.

Soldado  numa batalha que todos enfrentamos, este rapaz, meu melhor amigo, faz o tipo romântico, jeito raro em dias presentes. Flores, chocolates, passeios de mãos dadas por bosques, serenatas com violão, jantares a luz de velas com músicas românticas, fazem parte de seu generoso estoque de munição.

Esse meu amigo foi pego pelo amor há mais de dois anos, por uma bela ruiva de cabelos cacheados. Era mais velha, mas correspondia a seu amor. Os dois tiveram uma linda história de amor por esse tempo.

Confesso que, por ser meu melhor amigo, sentia certa ponta de ciúmes. Aquele tempo, antes dedicado a mim, fora partilhado e reduzido a ponto de eu ser apenas uma opção em sua amizade. Mas, respeitei, afinal não era sempre que ele encontrava alguém, também pelo fato de ser tímido.

Quem via de fora, imaginava que tudo estava bem. Quem estava por dentro, sabia que existiam seus problemas, mas nada fora do normal.

Entretanto, o tempo foi passando e ele fora descobrindo coisas terríveis. A garota não era tão boa e não correspondia da mesma forma. Ele tentara salvar seu namoro, imaginando que fosse algum problema com ele, mas não era. O problema era ela.

Traição, mentiras, omissões. Aos poucos, o garoto sentia seu coração se partir cada dia mais. Ele chorava, sentia-se mal, não acreditava que tudo aquilo poderia estar acontecendo a ele, um garoto romântico que fazia de tudo por ela.

Um dia, ainda apaixonado, ele resolveu terminar. Ela, apenas continuou a seguir sua vida, com outros caras, sem se importar com o amanhã.

Hoje, encontro-o ali, baixo àquela árvore, chorando, mesmo 3 meses depois. Eles nunca mais trocaram uma palavra, mas a garota continuava a seu coração.

“Amigo, não chore!

Não chore por caminhos que você nunca andou, não chore por aquilo que sempre tentou. Você deu o melhor de si mesmo, foi romântico, respeitou e foi sincero. Ela nem deu a mínima. Sei que esse é o pior tipo de dor que existe, quando você se entrega e não tem o mesmo retorno que espera.

A vida é injusta, sim! Mas pessoas maravilhosas como você estão tentando fazer deste, um mundo melhor. Nunca pare de tentar! Algum dia, você encontrará alguém para partilhar seu coração.

Não é porque uma pedra te derrubou algum dia que você tomará cuidado sempre em todo seu caminho. Quem sabe, algum dia, essa pedra não se torne sua aliada.

Desista desse seu coração quebrado e deixe os erros passarem, aprenda a perdoá-los e traga-os como um aprendizado. O amor que você perdeu não vale uma lágrima, não deve valer um pensamento seu, não vale tudo aquilo que te custou. Algum dia, você será grato pelo que passou.

Talvez esse amor que você sente aí dentro nunca acabe. Independente disso, sempre que você precisar, saiba que estarei aí, sentado a seu lado. Para te dar forças.

Algum dia, você será compensado pelo bom coração que tem. Só nunca o perca!”

Last Hope

Desistir…

Palavra que ecoa tanto em minha cabeça. Obstáculos que me derrubam, fazem-me chegar até aqui. Estou chorando. Meu coração, despedaçado. Minha cabeça dói. Estou uma bagunça. Não vejo ninguém. Não vejo nada.

Desistir?

O destino me trouxe até aqui. Apenas um robô controlado por mãos alheias. Não almejo algo tão metódico. Pensei que, guiado, seria mais feliz, mas as dificuldades fazem parte do processo. Serei feliz apenas quando der o meu melhor, quando souber quem sou de verdade, quando à prova, me por.

Desistir? Jamais!

Há uma faísca que pode crescer e se tornar um fogo de esperança. Apenas uma faísca, mas o suficiente para me fazer crecer.

Eu durmo e acredito que tudo será diferente amanhã. Serei melhor e farei melhor. Durmo com muitos planos para o dia seguinte. Amanhã será um dia melhor. Ao acordar, percebo que nada mudou. A vida é aquela velha vilã de todos os dias.

Uma velha vilã? Então venha! Sou um novo heroi a cada dia, disposto a vencê-la e hoje estou preparado. Tudo será do mesmo jeito enquanto eu permanecer intacto. Está na hora de transformar toda essa esperança em ação. Deixe que a vida aconteça, que eu a transformo em algo melhor.

É apenas um brilho de esperança, mas o suficiente para elevar um espírito guerreiro, para estar de pé dia após dia e lutar por aquilo em que acredito. As feridas já não me machucam mais. Sei que já fazem parte de mim e por isso as tratarei como lembranças que me fizeram amadurecer. Estou mais forte e é essa força que me mostra que toda essa esperança que carrego, não é em vão.

Então, deixo que a vida aconteça. Uma batalha a ser vencida que não se finda com o cerrar dos olhos. É só uma faísca, eu sei, mas é o suficiente para me fazer continuar. Mesmo que esteja escuro e não haja ninguém para me acompanhar, essa faísca dentro de mim brilhará, mais e mais forte, para que eu possa continuar seguindo.

>> Música indicada por Tamires Domingues

Jovem inconsequente

Eu pensava que tudo era muito fácil. Viver, apenas uma diversão. Jovem e imaturo. Acreditava que a vida fosse um simples jogo. Apertar um botão e recomeçar. Todos os erros iriam embora, tudo poderia ser refeito.

Então, algumas consequências começaram a surgir. Eu sentia o tapa no rosto de cada uma delas. O ardor me lembrava de todos os erros cometidos. Aquilo não era um jogo tão fácil quanto imaginava. Cada cicatriz, um aprendizado novo, uma angústia que não se curava.

Eu não conseguia lidar com toda aquela nova situação. Via meu corpo sangrando por todos os lados. Cada falso passo, um medo diferente. Cheguei a fechar meus olhos para o problema. Se eu morresse, pelo menos teria aproveitado tudo.

Então você me trouxe de volta à realidade. “Calma” era o que você me pedia. Tem sido o motivo para eu acreditar que poderia continuar vivendo. Vivendo para sempre. E eu não posso ignorar isso.

Entendi que, quando se machuca alguém, aquilo pode ficar marcado por toda a sua vida. Todavia, só havia entendido quando meu coração foi brutalmente ferido. Uma facada nas costas que atravessou todo o meu ser, perfurando meu coração. Aquilo me fez sangrar. E aquele sangue me fez repensar em tudo.

Eu era tão inocente, tão tolo. Como poderia acreditar que tudo que eu fiz era mero passatempo? Por que não pensei em todas as pessoas que cruzaram meu caminho? Desperdicei a chance de ouvir, continuar e vivenciar suas histórias. Perdi a chance de fazer parte de tantas vidas maravilhosas.

Eu deveria morrer por tudo isso, mas você sempre acreditou no meu potencial, sempre esteve ao meu lado a espera de que algum dia eu pudesse mudar. Esteve todo o tempo onde eu pudesse encontrar. Por você, valeria a pena morrer.

Eu brinquei com facas, entrei em celas de leões, vi lágrimas molharem o chão a cada palavra, a cada ato próprio. Eu ria. Era uma situação prazerosa. Eu dancei no fogo, cometi todos os pecados. Agora, estou pronto para assumir a culpa e pedir perdão.

Não ouvirei doces palavras de quem um dia eu machuquei, mas quero estar em paz comigo mesmo. Viverei para sempre, pois sei que vale a pena. Não serei lembrado como gostaria, mas lutarei para que esses dias vindouros sejam melhores.

Uma pessoa melhor eu serei. Uma vida digna terei. Para sempre viverei

Drones (Texto Completo)

Leia abaixo a história completa de Drones, inspirado no álbum homônimo da banda Muse:

01 – Dead Inside

O personagem conversa consigo mesmo sobre todas as coisas ruins e desiste de viver. Todos aqueles maus momentos se passam por sua cabeça, enquanto permanece num chão frio, coberto de sangue. Toda aquela trajetória, desde ser apenas um lacaio que se vê como um expectador, passando pelo momento em que se torna o braço direito daquele homem até o momento em que se arrepende. Entretanto, uma voz grita ‘reaja’ para que ele possa consertar seus erros como se deve fazer.

02 – Psycho

O personagem começa contando a história que ele menciona em ‘Dead Inside’. Um homem, tido como Deus, venerado e obedecido faz com que todos sejam seus lacaios. O personagem tenta libertar os outros, mas é tentado com promessas de algo melhor. A priori, ele acredita que pode libertar a todos, tornando-se um ‘agente duplo’, mas tantas regalias lhe faz dominado pelo poder.

03 – Mercy

Ao perceber que fora traído por si mesmo, o personagem tenta reparar o erro, libertando a todos. Entretanto, aquele venerado homem, acusa-o de traição, indicando que ele deve ser punido para que nenhum dos segredos vaze. Ele é perseguido e violentado. A dor física e emocional o consome. Ele clama por misericórdia.

04 – Reapers

O líder sabe que todos o obedecem e gosta desse poder. Pode fazer o que quiser, elimina quem for contra, mas continua sendo venerado. O personagem se sente responsável e culpado por agir como aquilo. Lá dentro, uma guerra se inicia.

05 – The Handler

Pensando ter fugido, o líder opressor encontra o personagem e tem um diálogo com ele. O líder se gaba por ter todos na mão, enquanto o personagem, que fora usado apenas como cobaia é tido por matador. O personagem diz que fugirá, mas o líder debocha dele, instigando-o a fugir.

06 – Defector

O personagem entra em conflito interno. Quer fugir, mas não pode, pois deve consertar o erro que cometera. O líder continua a debochar dele. Entretanto, alguns captam a mensagem e capturam o líder, levando-o para outro lugar. O personagem se vê diante da saída.

07 – Revolt

O personagem continua em conflito interno. Fugir e viver, voltar para lutar e morrer. O que fazer? Aquela voz que ordenou sua reação se materializa diante de seus olhos. Ambos conversam sobre o que é certo ou errado. Ele resolve fugir com outros, poucos, deixando que ali continue uma guerra.

08 – Aftermath

Finalmente em casa, o personagem encontra-se nos braços de sua amada. Aquele é seu refúgio. O personagem declama frases de amor, dizendo que sempre deve cuidar dela, pois ela cuida dele também, sabe seus medos, suas fraquezas, mas sempre está junto a ele. É ela quem lhe dá forças para viver.

09 – The Globalist

O personagem encontra o líder em estado de sofrimento. Pensa até em vingança, mas resolve sentar-se e ter uma conversa franca com ele, sobre as consequências e o mal que todo aquele poder lhe causou. Apesar de tudo, o personagem tem esperanças de que, algum dia, ele se tornará uma pessoa melhor. E, quando isso acontecer, ele estará disposto a lhe dar sua amizade.

10 – Drones

Todo aquele mal lhe passa pela cabeça, como um compilado, para que ele leve como aprendizado na próxima vez. O mundo deve ser mudado, mas para isso, eu preciso me mudar. Então, devo começar hoje mesmo?

Drones

Mortos. Mortos por alguém frio que só queria poder, que, com ninguém, se importava.

Mortos. São da minha família, são da sua. São meus amigos, são seus. Mortos por alguém que usou mal sua cabeça. Mortos por tentarem ser alguém.

Mortos. Estou morto por dentro. Estou morto por ver um mundo dominado por psicopatas. Eles não têm misericórdia. Ceifadores. Manipuladores. Sou um desertor que se revolta e implora por um mundo melhor. Mas, as consequências só vem para mim. Consequências desses poder globalista.

Mortos. Mortos por esses drones.

Continuaremos nesse mundo de sangue e destruição? Quando o mudaremos?

The Globalist

Podemos ter tido um momento de paz, um momento de virtude, um momento de esperança, mas isso não quer dizer que os problemas acabaram. Devemos lutar por um mundo melhor.

(…)

É estranho imaginar como o ‘jogo vira’. Antes, aquele opressor, com tamanho poder, estava ali no chão, com suas vestes rasgadas, sujas, sangradas. Parece ironia, mas ele se agonizava. Meu coração batia trêmulo, sentindo um pouco de piedade por alguém que tanto fez mal.

O que fazer? Perdoar? Pisar? Proferir-lhe toda a verdade para fazê-lo sentir-se culpado?

Sentei-me a seu lado. Ele não parecia almejar uma conversa. Senti pena daquele indivíduo. O que o fez chegar a tal ponto? Não lhe perguntei. Saberia que a resposta não viria.

“E aí, cara, tudo bem com você?”

Não houve respostas. Apenas um olhar vazio e distante.

“É estranho ver uma pessoa que tanto fez mal, para mim também, numa situação degradante como essa.

Não imagino o que tenha acontecido a você. Pode ter sido traído pelas pessoas de seu convívio, pode ter tido o coração dilacerado por alguém, pode ter confiado nas pessoas erradas.

Cruzou pelas estradas erradas, com os errados, com quem poderia ter te feito mal. E começou a achar aquilo normal. Agiu com outros da mesma forma. Não sentia remorso, não sentia culpa, não pesava na consciência. E hoje te vejo nesta situação.

Perdeu todo o império que um dia lograra. Se alguém não ‘dançasse conforme a música’ para você, bastava substituí-lo sem o menor pesar. E foi assim que seguiu pela vida.

Nutriu um ódio por essa terra, nutrindo ódio em vidas alheias. Ciclo viciado que desprezava qualquer sentimento de bondade. Semeou o negativo por terras de impureza infértil, de bondade antes em potencial, de bondade hoje em estágio final.

Foi dos inocentes um deus, venerado, alimentado, almejado. Crentes por algo melhor se tornaram. Esqueceram-se de suas vidas, antes maravilhosas, maximizados aqueles problemas outrora insignificantes. A vida tornara-se melhor. Tornara-se?

Mas aquele mesmo ódio semeado, plantado e nutrido, foi colhido e repartido entre os seguidores de tal fé. O ódio, antes enrustido, se digeria e escapava entre o único poro restante de uma mente que almejava poder. E o poder, derrotado pelo poder, se esvaneceu.

Agora não sobra mais nada. Apenas um chão frio e seco, coberto de sangue derramado pela ira. A lágrima que escorre é apenas consequência. Todos se foram. Não há sobreviventes por perto, não há mais alguém para amar ou odiar. Só lhe restava a solidão.

É da natureza humana: Destruir por acreditar em um ciclo interminável. Nada é eterno. Esse ciclo se rompeu e hoje o que resta é o pó. O pó que o vento leva para nunca mais. De tudo, lembranças ruins e uma consciência que jamais se cala.

Levante-se, erga-se. Há ainda uma vida a seguir. Nova? Depende de você. Faça o bem, semeie o bem, por mais incomodante que seja. Todos podemos recomeçar. Ainda há algo belo aí dentro, basta procurá-lo. E, se algum dia, essa carapaça arranhada se quebrar completamente e revelar um homem de forte luz espiritual, pode ter certeza que um belo caminho de flores e nuvens claras surgirão, amigos verdadeiros aparecerão e um pensamento de harmonia te contagiará.

E quando este dia chegar, quando um verdadeiro humano se libertar, chame a mim para uma amizade brindarmos. E, quem sabe, um copo de cerveja tomarmos.”

Aftermath

Em teus braços encontrei o amor e o refúgio que outrora sonhara para mim.

(…)

Sujo, cansado, faminto, revestido por sangue. Finalmente em casa. Ao abrir a porta, volto a sorrir. Encontro a felicidade no sorriso de uma pessoa. Aquela que sempre me deu carinho, me deu forças e me deu abrigo, recebendo-me com gentil sorriso.

Preocupação. Tira todas aquelas vestes rasgadas e lava minha alma num banho. Veste-me com limpas roupas e me afaga em seu colo. Abraça-me forte. Chora tímida e discretamente, permanecendo forte para elevar meu espírito.

Posso não ser o heroi que mata leões ferozes, posso não ser forte para derrotar dragões de sete cabeças, posso não ser corajoso a escalar grandes montanhas, mas nada lhe importa, que escolheu dedicar-se todos os seus dias de sua vida à minha.

Choro. Sempre pedi alguém que me compreendesse, que aceitasse viver com todos os meus medos, meu temores, minha insegurança. Não sou perfeito, mas nunca precisei para ter uma pessoa tão maravilhosa ao meu lado.

Prometi a mim mesmo que sempre cuidaria dela como também sou. Não por obrigação, mas por zelo.

Só jamais estarás. De ti cuidarei. A teu lado estarei. Grandes obstáculo enfrentaremos, pois se não formos capaz de derrotá-los, nossos corações permanecerão como um. Cuidaremos bem deles.

Quero viver o resto de minha vida inteiro, pois és parte de mim, és meu alento, és aquela quem me completa, aquela a quem meu coração pertence. Agora e sempre.

Quero adormecer em teus braços, pois é onde encontro refúgio, onde me sinto seguro, onde devo estar. E estarei aqui para oferecer o meu para te proteger, para te aninhar, ou por razão alguma.

Eu posso ter perdido todas as minhas lutas. Posso ter sofrido boa parte de minha vida. Posso estar cansado de todas as mentiras. Posso estar uma bagunça. Posso querer desistir do mundo. Quando te vejo, quando vejo teu sorriso, deito-me em teus braços e me aconchego, sinto todo o vazio de meu peito se esvair. Sinto-me protegido. Sinto-me bem. Pois, és meu refúgio, és minha vida, és meu eterno ser. És quem há muito almejei ter.

Nunca estarás só, pois a ti pertenço.

https://www.youtube.com/watch?v=zFjhC0T7jXE

Revolt

  • Reaja! Você é capaz de erguer a cabeça e seguir. Seja guerreiro. Você pode se rebelar.

(…)

“Reaja!”. Essa frase me motivou a sair daquele chão frio, mesmo não sabendo de quem era. A liberdade estava próxima. Poucos passos e logo estaria longe dali.

Mas não posso sair. Há uma guerra ali dentro. Devo ficar e ajudar, devo me redimir de todo mal que fiz, transformando todos esses lacaios do poder em homens de bem. Fazer o mal é muito fácil, fazer o bem e se preservar deste lado, não. Entretanto, voltei à luz e eles também podem. Devo voltar.

Posso morrer. O que fazer? Essa dúvida machuca meus pensamentos, fere meus sentimentos. E se eu sair dali e ele me alcançar novamente? Ele, o mal. Sinto o gosto da liberdade que, todavia, se mostra a cada minuto mais distante. Sei que esse é um mal que nunca parará. O que fazer? Sou parte desse sistema, devo ser parte de sua destruição também!

Quando toda a guerra acabar, tudo voltará a ser o que era antes. Um poder, vários em seu poder. Não posso fugir desse controle. Não posso ter essa liberdade. Não apenas eu.

Sinto-me fraco para continuar, sinto-me em dúvida. Fui cruel. Não devo tomar minha liberdade. Perdi minha alma, perdi meu caráter.

“Não pense assim!” – dizia a mesma voz de antes, agora em matéria.

“Você não está só, você não perdeu sua alma. Seu arrependimento é válido. Aqueles homens foram consumidos pelo poder. Se você foi capaz de se libertar disso, eles também podem!

Vê, atrás de você? Quantos ali não perceberam o mesmo. Estão ensanguentados, com frio. Preferiram a liberdade. Compreendeu que todos merecemos respeito por igual, não vivermos em uma hierarquia de poder. Eles são jovens sedentos por liberdade e esperançosos por um futuro melhor.

Assim como eles, você ainda tem muito a provar. Já provou o gosto de sangue e fome desta terra, agora deve sentir o frescor da brisa e da água pura.”

Ele me mostra suas cicatrizes.

“Eu já fui um de vocês e os estive observando. Ajudei quem fosse preciso, como ajudei você. Fiz o que você almejou, recusando minha liberdade. Alguns são ingratos e acreditam que somos todos egoístas, que somos todos iguais, que somos todos maus, que não queremos ajudar ninguém. Nem todos somos assim. Somos ainda o que chamam de ‘a esperança da humanidade’ e assim que continuaremos a agir.

Por isso, vá! Vão. A liberdade os espera. Vocês têm muito a crescer, muito a ver. Acompanhem seus filhos, cuidem de suas famílias, preservem seus amigos, pratiquem o bem e a solidariedade. A vida é bela para continuar desperdiçando. Não sejam mais escravos de nada ou ninguém. O mundo ainda acredita em pessoas boas como vocês. Sejam a alegria, a felicidade, a verdade, a vida.

Espalhem coisas boas para o mundo.  Não sejam escravos da maldade só porque muitos são assim. Não façam o mesmo que os tolos só porque é divertido. Tenham caráter, tenham moral. Tenham uma vida digna e plena, sem se preocuparem em recompensas. Sejam os verdadeiros humanos.

Vocês podem fazer este mundo ser o que quiserem.”

https://www.youtube.com/watch?v=ZuL3GsnhbdE

Defector

  • Livre! Sim, estou livre.

(…)

_ Fuja! Fuja, desertor.

Aquelas palavras. Aquele sorriso de deboche. O que fazer? Estou fraco.

Pense! Você precisa escapar daquilo. Sua liberdade está em jogo. Precisa fugir de seu opressor. É você quem comanda sua vida, não ele. Ele não pode mais te controlar. Não pode comandar sua vida.

E os outros? Deixo-os aí? Eles não estão nem aí para você. Querem te matar, querem se matar. Você está sozinho agora. O mundo é apenas dele. Apenas de seu opressor.

Não! O mundo não é dele. Seu mundo está desmoronando. Eles se matam. Eles não têm mais o controle. Ele não tem mais o controle. Tudo está fora de si. Todos querem se matar. Todos querem poder. Todos são egoístas.

Eles se aproximam. O sorriso de deboche desaparece. Capturam-no. Capturam-me, mas me deixam cair. Levam-no. O poder secundário não lhes basta. Eles querem mais. Eles querem todo o poder. Não querem ser apenas um drone, mas o manipulador, o opressor.

Um dia da caça, outro do caçador. Quem diria? O opressor foi capturado.

Poder. O poder lhe subiu à cabeça. O poder lhes subiu à cabeça. Dê poder a um homem e verá as consequências. Eles não podem ser mais controlados. Eles têm desejos. De poder, de sangue, de vitória. Eles nem sabem mais o que fazem.

Ninguém mais. Ninguém mais estava ali, do meu lado. Todos se foram. O que farão com o opressor? Não sei.

Só sei que ali está uma luz. Uma luz à minha frente. Não vejo mais nada, além de minha liberdade.

Sim! Estou livre. Estou fraco, mas estou livre.

The Handler

  • Então, era aqui que você se escondia?

(…)

Destruição em massa. Sangue. Fogo. Gritos. Guerra.

Levanto-me daquele chão frio. Machucado. Vestes rasgadas. Caminho. Devagar. Manco.

Gritos. Choros. Tragédia.

Caminho. Manco. Paro. Uma luz. Uma sombra. Passos.

Caminho. Manco.

Os passos se aproximam. Alguém me observa. O medo me controla. Caio no chão. Choro.

Meu opressor. Meu manipulador. Fui encontrado. Estou derrotado?

Um sorriso. Deboche. “Finalmente, nos encontramos”. Era ele. Meu opressor. Aquele que me deu poder e me tirou a alma. Estou ferido, estou sujo. Levanto-me. Olho em seus olhos.

_ Não serei mais controlado por você ou ninguém.

Outro sorriso. Um tapa no ombro. Caio. Outro sorriso.

_ Não sejas tolo, não podes me derrotar. Tenho o mundo para mim, tenho todos para mim. Tenho poder!

_ Deixe-me em paz! – Grito – Não sou seu fantoche mais.

Outro sorriso. Deboche. Gargalhada.

_ Controlo quem eu quiser.

_ Pode me controlar, mas não mudará mais quem eu sou, não será capaz de controlar meus sentimentos.

_ Não vou precisar deles!

Sussurro. Deboche.

_ Não sou sua máquina. Não sou mais algo a ser controlado. Não sou um drone. Deixe-me paz!

_ O que farás?

_ Fugirei.

Deboche.

_ Então fuja!

Reapers

  • Um grande líder sabe muito bem como matar, oprimir, comandar e continuar sendo venerado.

(…)

Sangue por todos os lados. Destruição, fogo, maldição. Pessoas se matando, alegando que são traidores de seu senhor.

O líder, pouco se importa. “Deixem-nos se matarem”. Não há paz. Todos querem seu lugar ao sol. São controlados por falsas linhas. Não há um controle real. Querem ser adorados como o líder, querem ser mais importantes que os outros.

Controle mental. O líder não precisa dizer mais nada para ter o que quer. E eu fui culpado de tudo isso, quando consegui o poder. Todos acreditavam que eram capazes de tomar meu lugar. Ser o braço direito daquele que mata usando suas marionetes.

A recompensa é simples: Poder, dinheiro, domínio, solidão, falsa felicidade. O líder não precisa ordenar nada mais. Já conseguira o que queria: domar todos eles. E começava uma guerra inútil pelo trono do braço direito.

Consequências? Fogo, sangue, gritos. Dor. Paz, nunca mais se ouviu. Liberdade, quem precisa dela? Ser seu próprio dono, para quê? Poder, o único valor importante.

Posso ter fugido de todos eles. Como? Não sei! Não era uma liberdade plena. Ver todos eles se matando, matava-me por dentro. Eu era o culpado, eu sou o culpado. Como fugir e carregar toda aquela culpa?

Parem! Parem de se matar por alguém que pouco se importam para vocês. Reajam!

Tornaram-se os próprios ceifadores, os próprios juízes, os próprios deuses. São vocês quem comandam toda essa bagunça, toda essa guerra inacabada.

Parem! Não podemos causar mais dores.

Mercy

  • Herois, ataquem-no! Ele é um traidor. Não pode fugir! Sabe de todos os nosso segredos.

(…)

Dor. Sofrimento. Sou inimigo de todos. Ou será que são todos meus inimigos?

Poder. O poder me subiu à cabeça. Tentei libertar a todos e o que fiz foi exatamente o contrário. Matei aqueles que não me obedeciam. Causei sofrimento. Trouxe a todos aquele sentimento de revolta. Agora, sou o culpado. Sou o responsável. Fui controlado para controlar todos. Fui vítima do sistema e me tornei o opressor.

Minha alma. Será que ainda está viva ou será que já a vendi? Liberdade, opressão. Duas ações opostas. Meu pensamento era outro antes do poder. Por que foi transformado? O que eu fiz de verdade? Sinto-me tão culpado.

Eles precisam saber. Será que me escutam? Fui só uma vítima. Uma vítima que fez vítimas.

Poder. Controle ou seja controlado. Eu não soube usá-lo. “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Eu sabia disso, eu estava sofrendo, eu via aquela sofrimento. Eu só quis acabar com tudo aquilo. E o que fiz? Causei mais sofrimento.

Agora sou culpado por tudo. Sou o cabeça de todos os males. Ninguém percebe isso. Todos estão revoltados. Não deveria ir contra quem eles tanto veneravam. Eles matam, batem, oprimem aquele que for contra. E eu fui.

E o que mais me dói não é a dor física. Não é estar coberto de sangue neste chão frio. O que mais me faz sangrar é a dor emocional. É saber que fui culpado. Saber que me deixei controlar. Saber que sou tão mau e perverso. Saber que me deixei levar por essa situação.

E isso me machuca. Estou chorando. Estou ferido. Estou abatido. Causei tudo isso. Causei toda essa tormenta. Não há mais ninguém do meu lado. Estão todos contra mim. Estou só. Estou sujo. “Alguém pode me ouvir?”

Por favor, tenham misericórdia de mim. Sou só mais uma vítima desse sistema perfeito.

Psycho

  • Aquele ali, observando a todos. Consegue vê-lo? Ele pensa! Pode ser um perigo a todos. Também pode ser uma máquina interessante de se matar. Podemos transformá-lo num drone humano. Basta sabermos manejá-lo bem. Não vamos perder tempo! Traga-o para cá.

(…)

Correntes, filas, imagens, veneração. Por que todos estão fazendo isso? Não percebem o quão degradante estão mediante essa situação? Eu não sei o que fazer, não sei como agir, mas podemos reagir! Podemos lutar contra esse sistema. Não podemos permitir que algo nos controle.

Alguém me escuta? Parecem hipnotizados. Ah, se fôssemos unidos, se tivéssemos um plano, uma fuga, uma revolta. Eles não me escutam. O que está anormal com todos eles? Por que não podem me escutar?

Homens de vermelho se aproximam de mim. Parecem monstros, altos e fortes. Sorriso de deboche. Vêm até mim. Querem me matar? Querem me despedaçar?

Dizem que tenho um potencial desperdiçado. Eles podem me dar mais. Eles podem me dar poder. Eles podem me colocar no comando. Posso comandar todos aqueles que estão em situação degradante. Posso fingir e libertá-los, quem sabe?

Sou levado. Conversam comigo. “Você não precisa ser quem você é”, eles dizem. Estou amarrado. O superior me informa que posso ganhar muito com isso. Um de seus “lacaios” me traz farta refeição e uma arma. Descarregada. Traz-me roupas limpas, água pura e ouro. Aquilo parece bom.

Com o tempo, aquele poder me corrompe. Minha ganância se eleva cada dia mais. Mato quem não me obedece, mato quem eu quero. Aquele poder é meu, mas aquele não sou eu. Sou uma vítima do sistema ou um sistema que vitimiza? Não importa, tenho poder.

Tenho poder. Sou um psicopata. Estou morto por dentro?

Dead Inside

  • Reaja! – Gritava uma voz ao fundo, porém distante.

(…)

Morto. Estou morto? Não vejo ninguém, não ouço ninguém. Tudo está tão escuro. Sinto o chão gelado nas minhas costas. Minhas vestes rasgadas, sou capaz de jurar que não há pudores.

Do que me lembro? De pouca coisa.

Ali está uma figura estranha. Gigante. Iluminada. Há imagens de reverência. Que ser bondoso! Quem será? Será alguém de bem? Todos parecem adorá-lo. Vejo seus rostos felizes, esperançados e amparados. Estão todos bem.

Seria algum Deus? Talvez não. Não se parece um. Não se parece com Aquele que algum dia ouvimos falar. Esse parece ter um olhar mais sombrio, mais melancólico. Sou capaz de jurar que pareceu ser solitário em alguns momentos.

Ouço correntes, mas não as vejo. Onde estão? Todos parecem andar compassados numa fila indiana. Cada passada, um ruído de corrente. Olhem seus pés, uns amarrados aos outros. Eles trabalham duro, trabalham pesado. Começo a entender.

De manhã, trabalham. Sempre vigiados. Param para comer uma papa verde e retornam. A noite, adoram-no felizes. Os maiores veneradores podem tocá-lo, o que é algo gratificante para todos eles. Os mais rebeldes, confinados.

E eu ali, assistindo a tudo. Um mero expectador? Não! Eu também estou lá. Vigiado, dominado, obrigado a venerá-lo. E eu estou adorando tudo aquilo. Como é belo! Posso sentir sua luz daqui.

Em pouco tempo, me torno seu braço direito. Tantos benefícios concedidos a mim. Sou quase tão importante quanto o dominante. Todos reverenciam a mim. Não preciso ser bom, não preciso ser verdadeiro, não preciso ser eu mesmo.

Vejo todos eles se ajoelharem diante de mim, darem suas vidas por mim. E continuo vendo os sorrisos estampados ali, naquelas faces sofridas. E lhes dou apenas migalhas.

Esse lado das trevas é mais próspero. Só me basta ser quem eu não sou.

Ali estou eu. Gigante. Iluminado. Com imagens de reverência a mim. Que ser bondoso! Quem serei? Serei alguém de bem? Todos parecem adorar-me. Vejo seus rostos felizes, esperançados e amparados. Estão todos bem.

Todos bem. Mas, não eu. Sinto-me tão só. Sinto-me triste. Sou venerado, mas não me sinto completo. Algo me faz tremer por dentro. O que acontece? Não encontro respostas. Todos me adoram. Por que não me sinto bem? Preciso de respostas. Não as encontro. Preciso fugir dali.

Deserdei-me. Revoltei-me. Tentei escapar e me pegaram. Agora estou só, deitado no chão frio com minhas vestes rasgadas e sujas. Não vejo ninguém. Não ouço ninguém.

Será que estou morto?

Mais ou Menos Salinas (4)

Capítulo 4: No centro da cidade

  • Ó linda Princesa! Finalmente te encontrei.
  • Ó, meu doce e honorável cavaleiro. Estou muito feliz que você tenha vindo me resgatar.
  • Ó linda Princesa. Você tem um lindo par de olhos caramelos.
  • Ó, meu doce e gentil cavaleiro. Chegue mais perto de meus lábios para receber o encantado beijo de uma donzela.
  • Ó linda Princesa. Parece que estou sentindo seus úmidos lábios por toda a minha face. E cada vez mais, e cada vez mais, e cada vez mais…
  • Champignon! Pare de lamber Álisson agora! Você quer pegar alguma doença infecciosa?

Novamente aquele despertador soava irritantemente às seis da manhã. Apesar de ter tido um belo sonho, fui despertado por um pequeno cachorro amarelo que lambia todo o meu rosto, naquela manhã. Mas, eu não queria sair de lá por nada.

  • Larissa, eu acordei?

Ao ouvir isso, Larissa me jogou um pesado travesseiro em meu rosto.

  • Tenho certeza de que agora sim!

Era um sinal de que Larissa já havia melhorado um pouco desde ontem. Ou, apenas buscou um pouco de energia para me jogar aquela almofada. No mesmo instante, Vívian aparecia no quarto, apenas enrolada na toalha:

  • Oi, meu bem. Você melhorou?
  • Ah, agora estou um pouco melhor. A almofada que Larissa me jogou é bem pesada.
  • Estou falando com Larissa, dá licença? Eu quero mais é que você se lasque! – resmungou Vívian.
  • Tenho um pouco de dor no corpo, a febre não abaixou completamente. – respondia Larissa, colocando a mão em sua testa.

Vívian adentrou aquele cômodo cor-de-rosa, mesmo sem qualquer veste por baixo daquela roupa de banho, colocou a mão na testa de Larissa, parou por um instante e lhe perguntou:

  • Vai para a aula?
  • Vou sim. Hoje tem prova e o nosso amiguinho sorridente João deve ter feito meu resumo. Não posso fazer uma desfeita dessas com ele.
  • E se ele não tiver feito o resumo? – perguntei.
  • Ele descobrirá qual a sensação de ser afogado numa privada. – Larissa respondeu, sem alterar o tom de sua voz.
  • Você está bem melhor, hein! – disse Vívian – Vou tomar um banho. A água do café já está no fogo. Por favor, fiquem de olho para mim.

Quando Vívian saiu do quarto para o banheiro, Larissa e eu fomos até a panela e a encaramos por bons minutos. Então, Vívian apareceu na cozinha, ainda de toalha:

  • O que vocês estão fazendo? – perguntou ela, incrédula à cena de dois bobocas quase queimando seus rostos na água fervente.
  • Foi você quem pediu – respondemos em uníssono.

Vívian, violentamente, nos tirou daquela panela e começou a mexer a água da panela com uma colher de chá.

  • Mexe que mexe, remexe mexe, que mexe, remexe mexe – eu cantava, batendo palmas, enquanto Vívian rebolava com uma das mãos na cintura e um sorriso no rosto.

Ding dong! A campainha tocava. Como uma boa visita, fui atender. Ao passar pela sala, Brunna saía de seu quarto, já uniformizada e com uns cadernos nas mãos.

  • Bom dia! – ela me cumprimentava com seu sotaque ligeiramente baiano.
  • Ai, para de me chamar de baiana. Que saco! – disse Brunna, ao narrador da história que, por acaso, sou eu.
  • Bom dia, Brunna! Vai só de calcinha pra faculdade hoje?

Brunna se assustou com o comentário feito e olhou para as pernas:

  • Engraçadinho!

Ela estava de calça sim, mas uma brincadeira pela manhã não faria mal a ninguém. E se ela tivesse trajada daquele jeito, eu não me importaria.

  • E Tchely? Onde está? Aaaah! – estava eu conversando com Brunna enquanto abria a porta, quando vi o rosto de Hiago e gritei assustado.
  • Bom dia, Assombração! – disse ele – Larissa está aí?
  • Não! Ela morreu! – Disse-lhe, fechando a porta em sua cara.
  • Ai, que menino grosso! – disse ele, enfurecido, abrindo a porta novamente e me empurrando contra a parede. – Qualquer dia desses, vou dar um murro bem nessa sua cara desproporcional para ver se ela fica melhor.
  • Vai dormir, Hiago! Ninguém te chamou aqui não! – disse-lhe, impaciente.
  • Os incomodados que se mudem. – Ele respondeu.
  • Eu não moro aqui, quer que eu me mude pra onde? – continuei.

Ainda impaciente, ele me empurrou novamente e dirigiu-se à cozinha. Fui logo atrás.

  • Bom dia Larissa, Vívian, Brunna! – Cumprimentou Hiago as três, que já estavam tomando café com bolachas amanhecidas que eram de Letícia.
  • Larissa, eu juro! Eu tentei segurar a manada, mas um elefante me jogou contra a parede e escapou de mim. – Comecei a falar antes mesmo de entrar na cozinha.
  • Vocês dois ainda estão brigando? – Vívian me perguntou, secamente.
  • É impossível não brigar com esse acéfalo. – Falei irritado.
  • Antes acéfalo que desnutrido. – Hiago retrucava.
  • Pelo menos eu não fico torrando a paciência dos outros. – Continuei.
  • Está torrando a minha! – Ele continuou.
  • Porque você torrou a minha primeiro! – Continuei.
  • Eles são sempre tão carinhosos assim com o outro? – Perguntou Brunna, sussurrando à Larissa, enquanto tomava mais um gole de seu café.
  • Não, nem sempre! Só quando se encontram. – disse Larissa, apreciando a cena.
  • Porque você não volta pra onde veio? – falou Hiago.
  • Impossível você voltar, já que Minas não tem mar! – continuei.
  • Eu vou pro bar! – cantarolou Vívian.
  • Cansei! Vamos parar vocês dois e vamos embora pra faculdade. Se quiserem continuar brigando, faça como toda pessoa normal e briguem no ônibus. E depois na sala de aula. Mas, temos que ir! – gritou Larissa.

Aquela gritaria havia cessado, mas as faíscas que saíam de nossos olhos, em direção ao outro, era perfeitamente nítida.

Saindo de casa, fomos até o ponto de ônibus. No ponto seguinte, apenas Letícia subiu. Todos estavam estranhando a ausência de João.

  • Pelo amor de Deus, me responda! Onde está nosso amigo de sorriso eterno? – perguntou Larissa, chacoalhando Letícia.
  • Ai, filha! Você está me machucando. Você está falando de João?
  • Não, estou falando de Antônio. Claro que é de João! Quem mais sorri o dia inteiro?
  • As duas olharam para o resto do ônibus e viram que todos estavam olhando para elas irritados.
  • Deu uma louca no João hoje e ele resolveu ir mais cedo. Disse que precisava entregar uma encomenda. Eu não entendi muito bem o que ele quis dizer com isso. – disse Letícia.
  • Eu espero que ele esteja com a minha, ou pagará muito caro! – disse Larissa.

Quando chegamos à faculdade, um garoto desconhecido gritava para todos que ali passavam:

  • Quem quer pó, quem quer pó? Bem baratinho! Na minha mão, um real o quilo. Moça bonita não paga, mas também não leva. Quem quer pó? Pó, madame?
  • Não, obrigada! – disse uma grã-fina que passava por ali com seu poodle, apenas para fazer essa fala na história.
  • Cola pra prova, cola pra prova, apenas cem reais! – gritava João do outro lado.
  • Eu quero, eu quero! – dizia o pessoal, enquanto pegava a cola das mãos de João e entregavam uma nota azul com uma imagem de garoupa estampa em um dos lados.

Após a dispersão, Larissa, Vívian, Brunna, Hiago, Letícia e eu o ladeamos e continuávamos a caminhar em direção à sala.

  • Um para cada um. Não reparem que é uma xérox – disse João, enquanto entregava uma folha para cada um.
  • A professora vai aceitar isso? – perguntou Vívian.
  • Ai, filho! Você deveria ter feito à caneta para todo mundo. Cris não vai aceitar essa coisa! – Resmungou Letícia, enquanto eu tentava virar a folha por todos os lados para tentar entender o que ali estava escrito.
  • Gente, gente! João teve muito trabalho ontem a noite, fazendo um para nós todos, inclusive para o burro do Álisson que não está sabendo nem de que lado é a folha. Dá aqui, energúmeno!

E Larissa virou a folha de cabeça certa para mim.

  • Então, temos que parar de criticar João e agradecê-lo pelo enorme esforço que ele nos fez! – continuou Larissa.
  • Obrigado! – respondeu João com um sorriso, esperando um abraço coletivo.
  • Se a professora não aceitar, matamos João. Simples assim. – terminou Larissa, sendo aplaudida por todos, exceto por João e, por mim, que ainda me concentrava naquela folha cheia de informações malucas.
  • Quero isso não, João. Tudo que eu preciso para a prova já tenho guardado na cabeça. – disse-lhe, entregando a folha. Esnobe, não?
  • Eu que tanto trabalho tive para xerocar essa mer… – disse João, rasgando a folha em mil pedacinhos. E, dessa vez, ele não estava sorrindo.

Continuamos a andar pela sala. Dessa vez, todos fariam provas na sala da agronomia. Como era um costume estranho daquele instituto, ao passarem por um caminho de terra e chegarem ao saguão de acesso às salas, uma turma de professores entregou-lhes uma bota de couro para que eles pudessem calçar. Enquanto calçavam, ficando na mesmo posição em que Napoleão perdeu a guerra, alguns funcionários do instituto passavam e metiam-lhes fortes tapas em suas bundas. Larissa e João chegaram a cair no chão, Hiago deu dois socos na cara de um zelador e Vívian deu um de seus gritos, seguidos de gemido:

  • Ai, delícia, volta aqui, volta! – dizia ela, enquanto o secretário geral saía correndo pelo mato, arrependido do que fizera.

Na porta, duas alunas, de 25 anos e que ainda estavam no colegial, tentavam atrapalhar a entrada de todos:

  • Primeiro ano? Naquela sala onde está aquela professora super gata! – dizia a primeira.
  • Consegue ver aquele professor ali só de sunga? – dizia a segunda, que olhava o professor mordendo os lábios.
  • Garota, o professor está completamente vestido! – dizia o aluno que tentava passar pelas meninas.
  • É porque ele ainda não me viu. – continuava a garota a admirá-lo.

Enquanto meus estimados amigos tentavam colocar a segunda bota, e recebiam mais tapas, eu analisava a relação de alunos matriculados e suas respectivas salas de prova. Estava me lembrando daqueles tempos de ensino médio, em que todos eram sorteados em uma sala em épocas de semestrais. Para dar uma melhor imagem, passei o dedo por toda aquela folha, como se tentasse encontrar meu nome escrito ali:

  • Ei, garoto. Pare com isso. Você está tirando toda a tinta do papel. – uma professora me chamara a atenção.

Realmente, por onde eu passei o dedo, a folha estava em branco. No meu dedo, as letras que eu havia tirado do papel.

  • Álisson, já vamos fazer a prova! – disse-me Larissa.

Então, todos nos dirigimos para a sala de aula, em fila indiana. Letícia comandava o grupo, seguido de Vívian, Hiago, João, Brunna, Tchely (que, novamente, não sabemos como foi parar ali), Catarina, Larissa e eu. Todos foram entrando um a um para onde Cris os aguardava. Quando eu ia entrando, Cris bateu a porta em minha cara, deixando-me de fora.

  • Muito bem, crianças! Espero que tenham feito todos os trabalhos que eu pedi. Também devo dizer que hoje, somente hoje, vocês poderão utilizar o text box. Agora, vamos às regras da prova. Por favor, olhem para o quadro.

Todos olhavam atentamente as três regras básicas que estavam no quadro.

  • Regra número um: Não pode falar, gritar, bocejar, dançar, pintar um quadro ou desenhar uma caveira na prova e indicar que sou eu.
  • Uma vaca pode, não pode? – sussurrava uma das garotas para a outra que concordava.
  • Regra número dois: Não pode desrespeitar a regra número um.

Todos presentes bateram suas mãos na testa.

  • E regra número três: quem for pego colando, terá o cabelo colado.
  • Ohh! – todos gritavam em uníssono.
  • Muito bem, quando eu contar até três, vocês podem começar. Quem tiver alguma dúvida, levante a mão que eu irei até a carteira de vocês. Vamos lá: um, dois…
  • Professora! – disse Arthur, levantando a mão.

Então, Cris foi do início da sala até o fundo, onde Arthur estava.

  • Pois não, meu jovem? – disse ela arregalando os olhos e tirando de seu rosto seus óculos invisíveis.
  • Então, podemos começar a fazer a prova? – perguntou Arthur, encarando-a.
  • É claro que sim, meu jovem. – continuou a professora.
  • Runf! – Resmungou Arthur.
  • Algum problema? – perguntou a professora.
  • Eu adoraria começar a fazer a prova, mas uma coisa me impede. – continuou Arthur, ainda mais desanimado.
  • Não quero desculpas! Pode fazer sua prova – disse a professora irritada.
  • Mas, professora… – tentou argumentar Arthur.
  • O que foi? – perguntou a professora o encarando mais de perto.
  • Você não nos entregou a prova. – respondeu Arthur.

Por uns instantes, a sala fizera silêncio. Ela o olhou por alguns segundos, levantou seu corpo, recolocou seus óculos invisíveis e por alguns instantes ficou ali parado, observando o garoto do cristalino. Então, Cris virou-se e foi até a mesa, pegou as provas e…

  • Quem quer fazer provas? – disse ela animada, enquanto jogava as provas para o alto.

Todos se levantaram alvoroçados e foram pegar as provas que caíam no chão, gritando. Tchely, Letícia e Catarina chegaram a disputar no tapa uma das folhas, mesmo sabendo que na mesa da professora ainda havia várias, intactas.

Já sentados, organizados, e com suas folhas amassadas de prova na mesa, os alunos começavam a pensar e rabiscar o que sabiam.

Cris andava por toda a sala para ver o que cada um de seus pupilos faziam e para evitar quaisquer tentativas de cola. Alguns não conseguiam evitar, como Davi, que estava com a cola na mão. E depois, a cola estava na boca.

  • Menino, para com isso! Vai grudar sua língua! – dizia a professora, tirando a cola da boca do garoto.

A professora continuou andando, rumo a sua mesa. João aproveitou o momento e sussurrou para Vívian, que se sentava à sua frente:

  • Vívian, a resposta da dois, qual é?

Vívian ainda não havia chegado nessa questão. Estava empacada na primeira questão que era de V ou F. Mas, para ajudar seu grande pequeno amigo, ela resolveu pular de questão. A questão era: “Se você comer muito açúcar, corre o risco de ter…”.

Ninguém na sala tinha certeza da resposta correta. Muitos pensavam que era algo como “dor de barriga”. Apenas Vívian sabia a resposta correta. Por isso, ela resolveu ajudar.

  • João, João. Psst!

Então Vívian começou a se apontar. João não estava conseguindo entender. Desconfiada de ter ouvido algum barulho, Cris olhou por toda a sala vistoriando. Vívian aquietou-se rapidamente.

  • Vívian! Qual é a resposta da dois? – Insistiu João ao ver que Cris se virava.

Vívian continuou se apontando. João não conseguia entender. Mas, todo aquele movimento começava a despertar o interesse na sala, pouco a pouco. Algumas pessoas perguntavam a João, apenas mexendo os lábios:

  • O que ela está fazendo?
  • Ela está me dando a resposta da número dois! – Respondia João, sem emitir som.

A professora continuava de costas. Vívian levantou-se da cadeira e começava a se apontar, olhando para João. Neste momento, a sala inteira já estava prestando atenção na nossa amiga. Vívian percebendo que estava sendo atração, indicou o número dois nos dedos e começava a se apontar. Todo mundo entendia que ela estava passando cola, mas não entendia o que ela estava querendo dizer se apontando daquele jeito.

Vívian, impaciente, arrastou todas as cadeiras do meio da sala para algum lugar e começou a dançar ali mesmo. Batia palmas e rebolava, remexia o corpo, arriscava uma dança do ventre e até pôs uma espada na cabeça. Depois, começou a dançar funk dançando até o chão.

  • AH! – Gritava João Pedro.
  • O que foi? – perguntou Camila, que se sentava em sua frente.
  • Pense bem. Os movimentos, Vívian… A resposta é sexo! – sussurrou o garoto.

Camila ficou muito feliz com a resposta e escreveu na prova. Alguns ainda não haviam entendido. Então, Vívian pendurou-se num candelabro que tinha no meio da sala (a escola toda ainda possuía uma decoração de tempos antigos) e começou a dançar sobre ele. Então, todos iluminaram suas cabeças e escreveram sexo como resposta, com exceção de Letícia, que escrevera loucura, João, que ainda não havia entendido nada e Larissa, que aproveitava o momento para vomitar.

Vívian pulou do candelabro. O barulho que seus pés fizeram ao tocar o chão chamou a atenção de Cris que se virou repentinamente. Ela via apenas uma sala comportada, fazendo sua prova. Vendo que não era nada de mais, Cris resolveu ignorar o barulho. Vívian conseguiu se sentar bem a tempo em sua carteira, assim como todos os alunos arrastados pela garota conseguiram colocar a tempo suas cadeiras de volta ao lugar. Questão de milésimos de segundos. Foi aí, que…

  • Atchim!
  • Quem foi? – disse a professora virando-se.

Quando Cris se virou, o candelabro se despencou na cabeça Ítallo, que tentava se concentrar em sua prova, quieto.

  • Você está bem? – perguntou Cris, preocupada, após retirar o candelabro de mais de 30 quilos da cabeça do garoto desacordado.
  • Diabetes, João! – sussurrou Vívian, aproveitando o momento de distração.

João ainda ficou um tempo tentando entender o que Vívian dissera. Enquanto aquilo matutava sua cabeça, ele tentava fazer outras questões.

Por outro lado, Larissa continuava não muito bem. Tentava responder primeiro as perguntas de alternativas para se livrar de um grande peso.

Nesse momento, Cris ligava de seu celular para a diretoria da escola:

  • Por favor, peçam para o pessoal da enfermaria dar um pulinho na ala da agronomia, setor B, sala 3, número 418, rua do matagal. Venha depressa que o garoto está morrendo!
  • Estamos a caminho. – respondeu a voz do outro lado.

Cris desligara. Enquanto esperava, ela passava pelas mesas para verificar os textboxes dos alunos, certificando-se de que não havia problema com nenhum deles.

  • O que a senhora está fazendo, professora? – perguntava João Marcos.
  • Primeiro, que senhora é sua mãe. Segundo, vendo se tem alguma pessoa que tirou xerox do textbox, não é, senhorita Larissa?

Larissa apresentou um sorriso amarelo.

  • Posso saber o motivo disso, dona Larissa?
  • Primeiro que dona Larissa é sua mãe… – começou Larissa.
  • Como é que é, mocinha? – perguntou Cris, com um tom de raiva.
  • Err.. quer dizer… é que eu estava doente, então João me ajudou.
  • Então, você estava doente? – perguntou a professora, enquanto continuava a analisar a folha de resumos.
  • Sim! – respondeu Larissa.
  • Que bom! – disse a professora na maior naturalidade.
  • Que bom? – perguntou Larissa, enquanto o resto da turma caía na risada.
  • Ops! Quer dizer. Que bom que você está aqui na sala, melhor, fazendo a prova. – disse a professora, sem graça, enquanto a turma continuava a rir.
  • Meu pai do céu! – exclamou João alto pela sala.

Cris devolveu a folha à garota, que lhe perguntou:

  • Professora. Sei que não vou me dar bem nessa prova, pois estou muito mal. Não estou conseguindo raciocinar direito. Quero saber se posso fazer a prova de recuperação semana que vem, já que amanhã viajaremos para Montes Claros.
  • Ah! Você não quer fazer provas porque vai viajar. Bonito, não?
  • Não tanto quanto as pernas de Paula Fernandes, professora. – gritava uma voz no fundo da sala.

Então, Cris parou para olhar suas pernas descobertas.

  • Tudo bem. Ouçam todos! Quem for fazer a prova de recuperação, pode vir semana que vem. Amanhã estarei por aí, em qualquer matinho, para entregar a nota de vocês.
  • Hmm.. Matinho! – zoavam alguns alunos.
  • Quero dizer, em algum lugar no instituto. – A professora tentava consertar, envergonhadíssima.
  • Você entendeu o motivo de ela ter falado matinho de primeira? – sussurrou Hiago para Letícia.
  • Olha, acredito que ela esteja querendo fazer um sexo bem selvagem com o primeiro aluno que ela encontrar. – disse Vívian, intrometendo-se na conversa.
  • Era minha vez de responder, sua tapada! Eu quase não apareço nessa maldita história e você ainda rouba minhas participações? – esbravejava Letícia para a garota.

Subitamente, o chão da sala se abriu, bem no rumo de Letícia, que caía num lugar profundo, sem destino, desconhecido. Enquanto ela caía, dava um grito bem alto, ouvido por todos, mas ignorado. Não me perguntem o porquê de isso ter acontecido. Também não me perguntem quem teve essa brilhante ideia de fazer isso. Eu só sei que foi assim (assovia).

Quando o chão se lacrou, todos voltaram a fazer suas provas. Todos, exceto Larissa, que, como não se sentia nada bem, resolveu entregar a prova com algumas questões em branco. Quando analisou novamente, percebeu que apenas quatro questões estavam em branco. De seis! Que progresso!

  • Aqui, professora. Não estou me sentindo muito bem.
  • Ah, mas você respondeu quase todas, muito bem! – elogiava a professora.
  • Não, professora, eu deixei… – tentou dizer Larissa.
  • Não, menina, não seja boba! – dizia a professora, enquanto começava a completar as respostas que estavam em branco. – Você respondeu todas e muito bem! Aposto que você nem vai tirar uma nota tão ruim assim. – Ela continuava a falar, enquanto apagava uma das respostas de Larissa, que havia marcado A, sendo a resposta correta a letra E, marcada pela professora.

Enquanto Larissa tentava sair da sala honestamente, eu estava dando outras voltas pelo instituto. Passei por caminhos que, no dia anterior, ainda não havia passado. Tudo porque aquelas garotas não paravam de encher o saco. Não o meu, mas de todos que passavam.

  • Nossa, você viu aquela bota horrorosa daquela menina que estava ali?
  • Menino! O que aconteceu com o seu cabelo? Parece que foi eletrocutado!
  • Olha aquela vaca! Com aquele sorrisinho, sei muito bem dizer o que ela estava fazendo ontem a noite.

Em minha trajetória, encontrei um celular preto, antigo, no chão. Até hoje, o pessoal briga comigo por eu não ter pego e devolvido, mas vou contar a verdadeira história do que aconteceu naquele dia. Nada de mentiras. Agora vocês entenderão o que realmente aconteceu. Confiram.

Estava eu caminhando pelo instituto com uma metralhadora na mão. Como havia feito alguns amigos, enquanto caminhava, resolvemos brincar de Counter Strike de verdade naquela escola. Espalhamos algumas armas pelo caminho e montamos dois times de três pessoas. Então, a disputa foi sangrenta. Tiro para todos os lados. Quando restava apenas eu do meu time e outro do time adversário, resolvi procurá-lo nos terrenos mais baixos da faculdade. Foi aí que eu encontrei aquele celular.

  • Oh! Como brilha! – eu dizia, fascinado.

Aquele celular mudaria minha vida. Finalmente poderia conversar com qualquer pessoa do mundo que a conta jamais seria paga por mim. Era muita felicidade!

De repente, o celular tocou. Era um número desconhecido para o dono daquele aparelho. Meu coração tremia. Tudo em volta ficava escuro. Eu estava gelado. Então, o adversário apontou sua arma pra mim e gritou:

  • Chegou seu fim!
  • Agora não, imbecil! Estou tentando fazer uma cena dramática!

Arranquei-lhe a arma de suas mãos e a enfiei em seu…

  • Crianças, depressa! – gritava uma professora logo ali – Ou vocês perderão a revisão para a prova de amanhã.

Enquanto as crianças ao meu lado corriam, o celular não parava de tocar. Abri-o e coloquei em meu ouvido. Foi quando, uma voz assustadora disse:

  • Sete dias! – era uma voz feminina, mas assombrosa.
  • Não está. Quer deixar recado?
  • Recado? Estou dizendo que você só tem sete dias!
  • Sete dias pra quê, moça?
  • Pra morrer! – dizia ela, rindo maleficamente.
  • Sei, mas eu ou o dono do celular, porque ele não está neste momento.
  • Não quero saber! São sete dias e ponto final.
  • Você já disse isso, não sabe dizer outra coisa não?
  • Você irá morrer! E eu voltarei para buscar sua alma.
  • Olha só, eu não sei quem é você e outra… Ah! Só um minuto, meu celular está tocando. Alô, Larissa? Oi, você já terminou sua prova?
  • Sim, onde você está?
  • Estou perto. Já chego. Beijos!

Voltei ao outro telefone.

  • Eu preciso desligar minha amiga está me esperando. Beijos gatinha, se cuida!
  • Espere…

Ao perceber o que eu havia feito, coloquei o celular de voltar ao lugar e saí correndo. Como se isso fosse adiantar alguma coisa. Agora vocês conseguem entender perfeitamente minha situação, não é mesmo? Hein? Respondam!

Voltei até a ala da agronomia, e lá estava Larissa. Contei-lhe tudo o que havia feito e ela me contou o que havia acontecido em sala.

Continuamos andando em direção ao pátio. Alguns colegas continuavam a caminhar conosco após fazerem as provas. Flaviana, quando viu Larissa e após cumprimentá-la, foi logo informando:

  • Agora é oficial. Amanhã sairá um ônibus daqui do instituto que nos levará para Montes Claros. Voltaremos sábado à noite. Três professores nossos irão.
  • Quando ele sairá?
  • Onze horas da manhã. Não se atrase, ou você irá se perder!
  • Obrigada! – agradeceu Larissa, enquanto Flaviana corria.

Então, paramos. De longe, Vívian aparecia com seu cigarro na mão, ao lado de João, sorridente.

  • Pelo sorriso, foi muito bem na prova. – Perguntei.
  • Não, com certeza peguei recuperação na prova de hoje também. – E continuou ele lá sorrindo.
  • Vívian, qual a graça que você vê em fumar? – perguntei.
  • Eu não fumo pra rir! – disse ela, enquanto me baforava na cara.
  • Eu sim!

Tentei tirar o cigarro de suas mãos para fazer uma demonstração, mas logo fui recebido com um tapa na mão, deixando-o cair.

  • Galera, o ônibus sairá amanhã. – Larissa anunciou.
  • Eu não vou poder ir nesse ônibus. Como vamos fazer para nos encontrarmos? Ficarei perdido naquela cidade! – resmunguei.
  • Larissa, precisamos ver isso. Talvez se falarmos com o professor Gabriel, conseguimos uma brecha no ônibus para ele. – disse Vívian.
  • Ou, ele também pode amarrar uma corda na rabeira do ônibus e ir de skate. – sugeriu João.
  • Vou pegar o lugar de João. Com nosso tamanho ninguém vai notar a diferença. Basta pegar apenas um pouco de sol. – disse, ironicamente.
  • E eu vou de quê? – perguntou João, confuso.
  • De bicicleta! – peguei uma torta de espuma que estava ali no chão, misteriosamente, e acertei em sua cara, derrubando-o na lama logo em seguida.
  • Seu monstro! – disse Letícia, de longe, ao ver a cena, derrubando-me logo em seguida. – Joãozinho, você está bem? – Letícia estava chorosa.

João tentava recuperar seu ar, ainda sorrindo:

  • Sim! Estou muito bem. Obrigado.
  • Então, trate de ficar mal pra cena ficar mais dramática! – disse Letícia raivosa, voltando a jogar João na lama.

Levantei-me da lama, neste momento.

  • Letícia, o que você está fazendo? Não sabe que essa é uma camiseta de grife?

Todos olharam para mim céticos.

  • Quanto custou essa camisa, filho? – perguntou-me Letícia.
  • R$ 9,99! – Respondi com um sorriso amarelo.
  • Vamos embora daqui. – Sugeriu Letícia.

Esse era o grupo: as meninas (Letícia, Larissa e Vívian) conversando lá na frente, enquanto eu e João, lamacentos, tentávamos tirar o excesso que nos cobria. Repito o que disse: Tentávamos.

Mas, quando passamos pelo pátio, algo triste aos olhos de Larissa chamou-lhe a atenção. Na parede, vários cartazes estavam fixados sobre o tema “homossexualidade”. Muitos deles, contra.

  • Veja só isso: “A homossexualidade vai contra as leis de Deus!”. E essa outra: “A religião jamais permitiria a união entre duas pessoas do mesmo sexo. Isso quer dizer que um bom fiel cristão jamais deveria se permitir a tamanha heresia.”. Que absurdo! – Era o que Larissa exclamava.
  • E o que você pretende fazer? – perguntou João.
  • Eu poderia muito bem arrancar esses cartazes daqui. Não é uma coisa legal um instituto federal, como esse, pregar a homofobia!
  • Na verdade, o que eles pregaram foram cartazes. – disse Camila, que havia acabado de entrar na conversa.
  • Não, eu não falei isso! – disse Larissa que, ao ver que Camila estava rindo, fechou a cara.

Ignorando aqueles cartazes, lá foi a turma dirigir-se para o mesmo lugar que todos os universitários (ou sei lá como eles atribuem esse nome para alunos de institutos federais) se reúnem nos intervalos: naquele lugar pequeno, que não tem nem cadeira para se sentarem, mas que tem um pequeno buraco que dá acesso à moça que vende salgados congelados.

Quando chegamos, Vívian pegou um de seus cigarros da carteira, colocou na boca e o acendeu. Catarina foi até mim, e apontou para uma das manchas de minha camiseta:

  • O que é isso?

Olhei para baixo, e ela fez um movimento de sobe e desce com a mão no meu rosto, como aquelas brincadeiras de criança.

  • Fui tapeado! – Falei alto para alguém sentir pena de mim.

A turma da veterinária começou a se reunir mais uma vez. Para não ter qualquer problema, Arthur não se esqueceu de seu cristalino, dessa vez.

Eles estavam empolgadíssimos mais uma vez sobre o evento de exposições que estava acontecendo em Montes Claros, denominado Expomontes. A turma atualizava-se com outras informações, como as palestras que teríamos no primeiro dia, como se reuniriam para o show de Paula Fernandes e quais os pontos de parada antes de irmos embora.

Cada vez mais, eu ficava aflito. O combinado era Larissa e eu irmos de ônibus, mas tudo ali já parecia mudar. Como eu não era nenhum aluno de veterinária, era mais que correto que eu não fosse com eles no mesmo ônibus. Entretanto, Vívian estava disposta a me ajudar, mas nada ainda estava certo.

Um pouco afastados do grupo, Larissa, João, Letícia e eu nos aproximamos do lanchinho, como no dia anterior. João, mais uma vez, pediu seu salgado de frango congelado. Larissa preferiu não pedir nada, mas, para seu azar, a vendedora reconheceu seu rosto logo de cara:

  • É você? – perguntou ela com uma entonação de assustada.

Larissa, que ainda estava de costas, tirou os óculos e virou-se, completamente vesga:

  • Perdão, o que disse?
  • Não adianta disfarçar! – e a vendedora enfiou um dedo gorduroso em seu olho, fazendo-os voltar ao normal. – eu queria te pegar ontem, mas, por culpa desse magricelo…

Ela olhou para mim e para João, tentando apontar para um culpado, mas não conseguia estabelecer nenhum.

  • Qual dos dois magricelos me empurrou ontem? – perguntou ela, confusa.
  • Foi ele! – apontávamos um para o outro, simultaneamente.
  • Bem, não me importa. Pois, vou é acabar com a raça dessa branquela nanica.
  • Não me chame de nanica! – Larissa, furiosa, tirou seu salto alto de bico fino e o atirou contra a mulher. Novamente, saímos correndo. A mulher, furiosa, tentou escapar novamente pelo mesmo buraco, mas foi impedido por Vívian, que a empurrou de volta, repetindo o trágico episódio do dia anterior. Vívian também foi correndo.
  • Esperem! – Larissa gritou, fazendo João e eu pararmos. Vívian nos alcançou. Sentamos em frente à biblioteca do instituto, quando Larissa continou: – Alguém viu Letícia?

Alguns minutos depois, lá estava ela, gritando euforicamente:

  • Larissa, olha só o que eu fiz!

Letícia aparecia sorridente, com um pedaço de cartolina amassado na mão e mostrou à garota.

  • Ah! Não acredito! – gritou Larissa, exaltando de felicidade. – Você tirou esses cartazes homofóbicos da parede. Obrigada!

Larissa levantou-se e a abraçou fortemente, logo sendo correspondida. Os olhos de ambas brilhavam.

  • Para comemorar isso, teremos uma cena homossexual em nosso livro? – perguntei aos outros que viam a cena das duas garotas abraçadas.

Pulando para a cena seguinte e deixando o leitor curioso sobre o que acontecera, encontramos Hiago vindo ao nosso encontro. Como Larissa ainda não estava recuperada completamente, resolvemos ir embora para ir à Policlínica.

  • Você não está doente, Larissa. Fica aí fazendo charminho para termos pena de você. – Vívian disse, soltando a última remessa que o cigarro lhe proporcionara no rosto de Larissa.

Subimos no ônibus. A professora do dia anterior, novamente, saía correndo de sua sala para tentar alcançar o ônibus. Como a cena foi a mesma do dia anterior, vamos ignorá-la para não termos que pagar um cachê maior (já que o salário dos atores aqui mencionados já geram alta despesa para mim, o escritor).

No ônibus, Vívian e Hiago sentavam-se na primeira fileira, Larissa e eu na fila imediatamente posterior. Hiago e eu ainda não havíamos acertado todas as contas, portanto o clima continuava carregado.

  • Não sei o porquê de você estar aqui. Deveria ter ficado no instituto para ver se não toma nenhuma bomba. – Impliquei.
  • Eu sei que você sentiu minha falta! – provocou Hiago.
  • Claro que senti. Eu sempre me inspiro em você! – continuei.
  • Sério? – ele perguntou.
  • Claro! Eu sempre penso: “Se não me cuidar, ficarei como ele”.
  • Imbecil! Idiota! Insuportável! – ele me xingou.
  • Engoliu o dicionário, hein? – disse.

Eu sabia que, depois daquilo, o diálogo morreria. Aproveitei o momento de hiato para tirar algumas fotos no ônibus com Larissa, mesmo doente. Vívian virou-se para trás e colocou a mão em sua testa.

  • Você não está tão mal assim.
  • Coloca a mão na minha testa também, Vívian? – pedi-lhe.
  • Eu quero mais é que você se lasque! – ela me olhou com cara de desprezo e voltou ao seu lugar. Ouvi uma risada por parte de Hiago.

Já estávamos entrando na cidade. Para quebrar aquele gelo, comecei a cutucar o braço de Hiago.

  • Hiago! – continuei cutucando, ao perceber que ele me ignorava.
  • Ai, o que é que é? – perguntou-me irritado.
  • O que você vai fazer agora? – perguntei-lhe.
  • Nada, por quê? – ele continuou.
  • Quero conhecer muito a cidade, mas Larissa está doente. Poderíamos dar uma volta por aí, o que você acha? – perguntei-lhe.

Hiago pensou bastante. Ele não queria atender àquele pedido de forma alguma, não tinha motivos para isso. Mas, como ele gostava muito de Larissa, estando esta doente, ele resolveu aceitar esse encosto.

  • Tudo bem! Só vou para casa tomar banho, trocar de roupa, passar protetor, alimentar Lanna e já passo na casa de Larissa.
  • É! Já vi que hoje eu não saio de casa. – exclamei.

O ônibus parara. Apeamos e rumamos para a Policlínica Salinense. Após passarmos por um imenso jardim e descermos uma rampa, entramos em um lugar que parecia ser a primeira sala de espera, minúscula por sinal. Na fila, quatro pessoas. Uma delas, uma idosa a ponto de morrer.

  • Número 214. – gritava a balconista.
  • Vou pegar um número, me esperem! – disse Vívian.

Sentamos os três naquele banco desconfortável com o encosto gelado da parede. Enquanto Vívian esperava uma das atendentes verificar qual era o último número que ela havia escrito, Larissa dirigia-se ao banheiro, unitário.

Eu já vira hospitais pequenos, mas não como aquele. Sentia-me quinze anos mais jovem, quando ainda morava numa pequena cidade com pouco mais de 10 mil habitantes.

Já desistindo de procurar, a atendente resolveu escrever o número 246 para Vívian, que foi se sentar ao lado da velha em estado terminal. E lá foi ela, tirar mais um de seus cigarros da carteira para fumar. Larissa (que já havia voltado), olhou irritada para Vívian, apontando para a idosa. Vívian olhou para o lado, quando viu a velhinha:

  • Oi, dona Carmélia! Como você está? Que saudades da senhora! Vejo que a história está muito bem. Parece estar bem mais jovem.

Entre algumas tossidas e escarros, a senhora dizia, lentamente, mostrando um olhar seco e triste:

  • Eu… estou… me… sentindo… muito… cof, cof!
  • Ah, parece que algo não está lhe fazendo bem. A senhora parou de fumar? Eu disse a você que aquilo era um veneno.
  • Número 213! – gritava a balconista. Parecia que a única função dela era essa.
  • Uai, retrocedeu? – perguntei.

A jovenzinha parecia irritada quando se dirigiu ao caixa.

  • Desculpe, moça! – disse a balconista, tentando consertar o erro – eu acho que pulei um número.

E lá foi a moça, desaparecer pelo corredor.

  • Ah! Olha Larissa, que gracinha! Ela dormiu.

Larissa, ao ver o estado da velha senhora, que aparentemente dormia, arregalou os olhos e foi logo conversar com a atendente:

  • Por favor, senhora. Deixe-me passar na frente.
  • Não! – disse ela secamente.
  • Por fav… Ah! O que aconteceu com você, menina? Parece mais magra desde a última vez que te vi.
  • Ah! Que isso! É que agora estou tomando um novo produto que minha médica passou. É uma formosura! Se quiser eu passo pra você. Cá entre nós… – agora ela sussurrava – Você realmente está precisando!
  • Ah, obrigada! Você é muito gentil! Então? Para onde eu vou mesmo?
  • Naquela sala! Tenha um bom dia!

Conseguindo passar a perna, lá fomos os quatro para o fim daquele corredor. Entramos numa porta. E… Adivinhem: entramos na segunda sala de espera. Dessa vez, com mais de vinte pacientes.

  • Tudo bem. Os homens eu dou um jeito – disse Vívian sussurrando para o nosso lado e, depois, alterando o tom de voz, chamando a atenção de todos que estavam presentes – Quem quer fazer sexo comigo? – dizia ela, abrindo os braços.

Foi um tiro no pé. Ao invés de homens correrem atrás dela, um monte de mulheres fez o papel. Não para o que vocês imaginaram, mas para bater nela mesmo, já que todas elas eram as esposas dos homens que se encontravam por lá. Vívian fugiu.

Alguns minutos depois, Larissa foi chamada. Ficando na sala, além dos pacientes figurantes da história, é claro, apenas Hiago e eu. Entretanto, apesar de esperarem que mais uma briga ocorresse, um longo silêncio entre nós prevaleceu. Para acabar com o tédio, Hiago puxou seu celular do bolso e começou a jogar. Como sou vidrado nesses joguinhos, independente de plataforma, resolvi sentar-me ao seu lado e colocar o cabeção bem no meio da tela do celular, impedindo-o de jogar.

  • O que você está jogando? – perguntei-lhe.
  • Acerte o cabeção. – disse ele, empurrando minha cabeça para o lado. Uma senhora, próxima a nós, observava a cena rindo.
  • Não é assim que joga não, seu burro! – tomei-lhe o celular das mãos e comecei a jogar.
  • Grosso! – disse ele tomando o celular de minhas mãos. A mulher continuava rindo.

Prensei-o na parede. Nesse momento esqueci que estávamos em um hospital.

  • Vocês dois são irmãos? – A mulher que ria nos perguntava.
  • Infelizmente sim! – disse-lhe.
  • O médico enganou-se com ele e, ao invés da placenta, jogou o bebê fora! – continuou Hiago.
  • Eu sempre pedi para papai adotá-lo para outra família, mas ele nunca quis. – continuei com aquilo.
  • Dona Noely? A senhora é a próxima! – chamou a atendente.
  • Tchau, meninos! Adorei conversar com vocês! – E lá foi ela, sorridente.

Quando ela se foi, Hiago e eu nos olhamos por alguns instantes e caímos na risada. Nem nós havíamos entendido o que acontecera ali. Será, por fim, uma trégua?

Já até pensava em fazer as pazes, até que o idiota ligou a câmera de seu celular e tirou uma foto minha. Aquilo me deixou possesso. Novamente, estava eu tirando o celular de suas mãos tentando apagá-la.

Enquanto Hiago tentava me impedir de tal ato, Vívian aparecia naquela sala, ofegante.

  • Caramba! O sexo foi violento, hein! – exclamei.
  • Que nada! Aquelas velhas correm muito! Álisson, eu preciso muito da sua câmera. Não sabe o que eu vi! – disse ela, exaltada.
  • Não! Você ainda não me disse! – comentei.
  • Na sala em que Larissa se situa, há muitos cartazes e banners com palavras grafadas incorretamente. Preciso registrar em imagem estática para publicar em rede social. – explicou Vívian.
  • Você comeu jiló? Por isso que está aí falando tão difícil? – perguntou Hiago.
  • Aqui está! – disse eu, tirando a câmera do bolso. – Mas, antes de você sair, preciso te falar algo a respeito da minha câmera.
  • Pode dizer! – Vívian prestava bem atenção.
  • Esse botão liga e esse tira foto. – Fui apontando.
  • Palhaço! – e recebi um tapa na cabeça – Logo volto. Esperem aí!

“Esperem aí”. Para onde ela estava achando que iríamos?

Voltando para sala, lá estava a médica, jovem, 32 anos, solteira, lindos olhos azuis e de busto volumoso, a perguntar sobre o estado de Larissa.

  • Então, você me disse que estava chupando uma laranja de Hiago e vomitou, certo? – perguntou a médica peituda.
  • Sim! – confirmou Larissa.
  • Muito bem! Quem é Hiago? – perguntou a médica.
  • Larissa, Larissa! – chegou Vívian, eufórica.
  • Ela é Hiago? – perguntou a médica, apontando.
  • Sim! Ela é Hiago! – confirmou Larissa, séria.
  • Hiago, você poderia me dizer que espécie de laranja era essa que você deu para a nossa amiga João? – perguntou à Vívian, fazendo um belo papel de médica.
  • Não, não! Você não entendeu. João é o magrelo que me vendeu uma cola para a prova de Cris. Eu sou Larissa. – consertou.
  • Muito bem, Srta. Hiago. Você não tem vergonha de permitir sua filha João de colar na prova não? – continuou a médica com seu questionário.
  • Que filha o quê? Veja se eu sou mãe de um estrupício como esse! – Vívian sentia-se mal com tal comentário. E Larissa do comentário de Vívian.
  • Eu entendo. Nesse caso…

A médica levantou-se de sua cadeira e abriu a janela às suas costas.

  • Adeus mundo cruel.

Víamos apenas uma mulher atirando-se da janela, enquanto gritava. Entretanto, antes que ela pudesse se jogar, passou alguns minutos tentando passar pela janela, já que um de seus peitos havia se prensado em alguma parte daquela janela. Depois de se jogar, outro médico apareceu em seu lugar. Esse não era peitudo.

  • Oh! O que aconteceu com a mulher? – perguntaram Larissa e Vívian preocupadas.
  • Ah, não se preocupem. Quando a coisa aperta, ela sempre faz isso. Veem? Da janela para o chão não há nem 50 cm!
  • Fofoqueiro! – gritava a médica pela janela, indo embora logo após.
  • Então, Larissa. Vamos aos remédios. Você me disse que estava sentindo febre, dor, ânsia de vomito e diarreia, não é isso?
  • Diarreia não! – consertou Larissa.
  • Muito bem. Você sabe que isso é virose, não é mesmo?

Larissa deu um sorriso amarelo.

  • Olha, doutor. Cuidado com os remédios que você passar a ela. Muitos elas não pode, pois ela não bate bem da cabeça. Fugiu do manicômio há pouco tempo, então, ainda está se recuperando.

Larissa começava a rir como uma retardada.

  • Entendo. – Analisava o médico.
  • Certa vez, encontraram um amigo dela boiando na privada. Tudo isso porque ele disse a ela que seu dente havia caído lá.

Larissa continuava a rir da mesma forma. O médico apenas observava atentamente as expressões de Vívian.

Também não deve deixar de mencionar que até semana passada, ela estava tomando remédios de tarja preta.

Larissa ainda ria.

  • Muito bem! Vou receitar alguns remédios simples para você. Onde é que está?

Enquanto o médico procurava em sua gaveta alguma coisa, Vívian aproveitava para tirar fotos dos erros ortográficos que se encontravam naquela sala.

  • Aqui está! – o médico colocava uma receita já pronta em cima da sua mesa.

Larissa pegou a folha e começou a ler.

  • Não. – disse Larissa, calma.
  • Não o quê? – perguntou o médico, curioso.
  • Não entendo nada desses rabiscos que você escreveu aí. – continuou Larissa.
  • Não? Minha letra é tão perfeita! Como você não entende? – questionou o médico, perplexo.
  • Não ligue para ela! – disse Vívian. – Vamos embora, Larissa. Depois eu decifro essa coisa. Me liga! – disse ela, fazendo sinal de telefone para o médico.

Quando as duas voltaram à sala de espera, lá estava o pessoal amontoado, tentando apartar a briga que acontecia: Hiago e eu, como sempre.

  • Eu odeio você, seu gordo imundo! – gritei de um lado.
  • Vai chupar prego, seu magrelo desnutrido! – ele gritava de outro lado.

Larissa, ao ver a cena, foi ao nosso encontro, já gritando:

  • Vamos embora para casa agora!

Olhamos um para a cara do outro. O pessoal já nos soltara, mas ainda por perto, para evitar qualquer outra eventualidade.

  • Tudo bem, então.

E fomos embora, como se nada tivesse acontecido. Lá fora, fomos logo perguntando:

  • O que o médico disse?
  • Que ela é louca! – respondeu Vívian.

Enquanto rumávamos para casa, Vívian nos mostrava os erros nos cartazes. Palavras como “sombrancelha” e “rejuvenecer” eram claramente visíveis. Questionávamos o nível de graduação da pessoa responsável por isso e se era realmente confiável que Larissa fosse se tratar naquele lugar.

  • Confiável não é não. Mas, como é o único lugar que temos aqui… – respondeu Larissa.

Foi assim até chegarmos ao nosso destino. Lá, encontrava-se Paulinha, varrendo a casa novamente.

  • Paulinha! – disse eu, indo ao seu encontro, já abrindo os braços.
  • Ah, muito gentil! – e ela me entregou sua vassoura, tirou seu avental e foi para a cozinha.
  • Ah, sim! Uma vassoura – disse eu, nada animado.

Hiago já não nos acompanhava. Foi para sua casa tomar um banho. Larissa foi para seu quarto descansar um pouco. Vívian para a cozinha fazer um mingau ralo para nossa amiga.

Fui até a área onde Paulinha estava. Ela alimentava Champignon e Alice e tentava fugir do assustador Tio Lu.

  • Ai, tio Lu, larga de ser porco! – dizia ela com seus gritinhos histéricos, enquanto Tio Lu soltava seus gases com cheiro de esgoto mal tratado.

Quando finalmente todos encontraram algo para fazer, com exceção de Larissa que estava dormindo, fui para o computador e fiquei esperando por Hiago. Esperei, esperei e esperei. Lembrei-me de que estava coberto de lama e fui correndo para o banheiro, tomar um banho. Quando saio, deparo-me com aquele homem, todo suado.

  • Uau! Nem passeamos ainda e você já está nesse suor todo.
  • Gordo sua fácil! Eu não posso nem sair por um tempo que já começo a suar.
  • Também, esse sol norte-mineiro não é nada fácil! Vívian, estamos indo! – falei alto a última frase.
  • Tudo bem, meu amor. Mas, volte cedo para termos mais uma maratona de sexo! – ela disse, enquanto dirigia-se ao banheiro, dando uma piscadinha para mim no meio do caminho.

Fomos para a rua. Não deixei de notar que ele estava com uma roupa completamente diferente à roupa que ele usava de manhã. Para piorar, ele usava uma camisa branca, como a minha.

  • Tomou banho? – perguntei-lhe.
  • Sim! – respondeu-me.
  • Você nem estava sujo. E vamos sujar mais agora. Pra quê isso?
  • Eu não gosto de sair sujo assim. Eu vou para algum lugar, tenho que estar limpo. Não sou esses porcos por aí que saem de qualquer jeito.
  • Ah! Muito obrigado mesmo. Fico feliz com tal consideração.
  • Você passou protetor?
  • Não, nem me lembrei.
  • Branquinho desse jeito? Por isso que sua pele está toda acabada. Vai ficar velho logo, já até tem sinais.

Dei-lhe um tapa na cabeça.

  • Você sempre muito amável, Hiago!
  • Estou falando sério, mongol. Você não pode sair brincando com o sol desse jeito. Vai acabar desenvolvendo algum câncer!
  • Desculpe. Eu não tenho mesmo o hábito de passar. Então não vai ser de uma hora pra outra que vou acabar me acostumando.
  • Aprenda e seja feliz! – ele finalizou.

Eu ainda não conhecia bem aquela cidade, apesar de ser pequena, eu já ter andado por ela e já estar no meu terceiro dia por lá. Então, já fui fazendo algumas perguntas a Hiago, mesmo algumas sendo óbvias demais, para quebrar aquele gelo.

  • Aqui tem loja de cds e dvds?
  • Não!
  • Ah, droga! Eu adoro passear por essas lojas. Também não tem cinema?
  • Sim, claro que tem! Está passando um ótimo filme em 3D, você quer ir lá ver?

Sabia que era ironia dele. Então resolvi dar-lhe um tapa na nuca.

  • Hiago, o que vocês costumam fazer de bom aqui em Salinas?
  • Nada! Aqui nunca tem nada.
  • Epa! Um momento. Aquilo é uma livraria?

Era estranho o que eu havia encontrado de tão longe: uma livraria em Salinas. Eu precisava entrar lá para conferir. Livrarias me chamavam a atenção.

Entrei lá e foi aquela decepção: não era bem uma livraria, mas uma papelaria, com direito a materiais escolares, de escritório, decorações para casa e várias canecas do Atlético Mineiro e do Cruzeiro. Um fato interessante sobre o norte de Minas é esse: lá eles dão mais valor aos times mineiros que o pessoal do Triângulo.

Quando entramos, fomos logo olhando tudo que estava lá. Era pegar, analisar, comentar, criticar e colocar de volta no lugar. Era assim com todos os objetos por quais passávamos. Até que um rapaz, novo funcionário, chegou até nós e perguntou, educadamente:

  • Posso ajudá-los em alguma coisa?
  • Não, estamos só olhando! – dissemos aquela célebre frase.

Mesmo assim, o vendedor não parou de nos seguir, então, resolvemos incluí-lo nesse passeio.

  • Veja só, Hiago! O Banco Imobiliário! Eu costuma jogar isso quando era criança.
  • Ah, deixa eu ver. Caramba! Muito bom esse jogo!
  • E esse bichinho aqui, o que faz?

Olhamos para uns bichos de pelúcia. Alguns mexiam a cabeça, outros mexiam os braços e outros falavam: “Me larga, idiota”.

O vendedor sempre nos seguia. Sempre que perguntávamos algo, ele respondia:

  • Ah, eu não sei o que isso faz não. Ah, eu não sei, mexe aí pra ver se faz alguma coisa. Esse enfeite aí? Bom, eu também não sei para quê serve.

Era até engraçado. Ele não sabia de nada.

Também fomos à seção de times. Lá, vários bonecos de Cruzeiro e Atlético Mineiro. Como sabíamos que Larissa torcia para o Galo, fomos procurar algo para ela:

  • Ah, Hiago, mas esses bichos de pelúcia são muito feios. Ela não vai gostar de nenhum.
  • É, você tem razão.
  • A propósito, qual seu time?
  • Sou cruzeirense e você?
  • Não, eu não gosto de futebol. Cruzeiro, é? Deve ter uma briga boa com Larissa.
  • Ah, não. Não somos muito fissurados em time. Às vezes rola uma zoação, mas nada de mais.

Naquela papelaria, ou livraria, como eles gostavam de denominar, vendiam sim alguns livros. Mas, era uma pequena estante com poucos exemplares. Até meu acervo pessoal era mais rico, digamos assim.

Despedimos do vendedor e saímos. De fora, comentei com Hiago:

  • Aquele vendedor não sabe nada, não nos informou nada, mas, sei lá, eu fui com a cara dele.
  • Eu também. Ele é bem simpático. Não é sempre que encontramos algum vendedor com bom senso como ele.
  • Nem me diga! Muitos da minha cidade, quando você entra na loja, já te olham de cima a baixo.
  • Não é tão diferente de Montes Claros.

Continuamos nosso passeio. No meio da cidade, havia um mercado municipal, ou uma espécie de camelódromo. Para resumir, era onde o pessoal se reunia para vender muamba. Hiago relutou em entrar naquele lugar, mas eu precisava conhecer, mesmo que também não gostasse muito. Para se ter uma ideia, até hoje tenho receio de entrar no camelódromo, denominado Shopping Popular, da minha cidade.

  • Vamos, Hiago! Eu quero conhecer.

E lá fomos. O cheiro era terrível. Incrível imaginar como ainda havia aqueles que conseguiam comer lá dentro. Eu teria feito vômito.

Depois da área de alimentação, porque dizer praça é um equívoco, víamos perfumes, pulseiras de relógio, bijuterias, utensílios domésticos e até alguns eletrônicos do Paraguai. Ladeando aquele mercado, algumas lojas de roupas com vendedoras nas portas que nos chamavam para entrar:

  • Venham, venham! Tudo muito barato, roupas bonitas, calçados confortáveis. O preço ó! Lá embaixo.

Ela precisava mesmo ter enfatizado que aquilo estava uma pechincha.

Depois do mercado, entramos em várias outras lojas. Lojas de enfeites para a casa eram as preferidas de Hiago. Entrávamos, analisávamos e esperávamos os vendedores falarem sobre o produto. Para finalizar, sempre ouvíamos:

  • Se vocês levarem agora, divido em três vezes no cartão, tudo sem juros. Produto de qualidade. Muito baratinho!

E sempre respondíamos com a mesma frase:

  • Não! Não temos dinheiro. Nem trouxemos a carteira. Estamos só olhando. Mas, viremos da próxima vez e levaremos alguns.

Voltar da próxima vez. Para mim, o vendedor teria de esperar eu voltar mesmo para Salinas. Sabe-se lá quando isso aconteceria novamente.

Também entramos naquelas lojas de presentes, que vendem jogos de tabuleiro.

Ao chegarmos à praça dos bancos, a mesma em que Vívian dançara sensualmente, Hiago perguntava se eu não gostaria de tomar um sorvete. Pedi um pouco de tempo. Subimos num coreto e lá conversamos um pouco sobre a vida. Naquele instante, nada de briga, nem discussões. Tudo entre nós estava em paz.

E para comemorar, fomos até a padaria próxima para tomarmos um sorvete. Como eu preferia picolé, resolvi pedir. Hiago fez o mesmo. Naquela cidade, só existia uma marca de sorvete, a “Kigelado”. Algo bem criativo, como vocês podem notar.

  • Uau! Que gelado esse picolé! – dizia uma das crianças que passava.

Continuamos andando. Quando estávamos quase chegando ao fim da cidade (deveríamos ter andado menos de dois quilômetros). Encontramos algumas pracinhas. Eram pracinhas bonitas, mas não muito arborizadas, o que fazia falta. Aproveitamos para descansar um pouco, sob aquele sol escaldante.

  • Hiago, até que você não é uma pessoa ruim. Estou gostando desse nosso passeio.
  • É! Você também não. Você é um pouco menos chato do que eu imaginava.

Ri um pouco. Trocamos o número de nossos celulares e após mais alguns minutos de conversa, voltamos a andar. Alguns caminhos eu queria conhecer, mas Hiago sempre me dizia que nada tinha por lá, então resolvemos ir embora. Será que ele queria me esconder algo?

Ao nos depararmos com uma loja de roupas resolvemos entrar, mesmo ainda com aquele picolé na mão. Fui olhando as roupas, pegando-as com a mão suja mesmo. Então, se você, meu amigo, morador de Salinas comprou uma roupa dessa loja e viu uma mancha marrom no tecido, não se preocupem: é mero detalhe da roupa mesmo. Ops!

Vi algumas roupas bonitas. Pena que eram todas caras. Como eu não poderia gastar tanto naqueles dias, apenas demonstrei interesse. E Hiago me acompanhava, dizendo o que ele gostava e não gostava. Alguns de nossos gostos batiam e outros não.

No balcão, havia uma foto de um modelo com uma camiseta muito bonita. Apontei para ele e comentei com Hiago:

  • Olha como essa camiseta é bonita!
  • Qual camiseta? Uau! Linda mesmo! – exclamou Hiago, ao ver a foto do modelo.

De princípio não tinha entendido muito bem aquela exclamação, mas quando olhei novamente e reparei bem na foto, comecei a rir descontroladamente. A vendedora ainda perguntou se eu não estava sofrendo de alguma convulsão.

Quando o relógio já marcava 13 horas, fomos ao supermercado. Antes de sair, Vívian havia me entregue uma lista de compras e já havia me alertado:

  • Hiago é compulsivo por ketchup. Então, se vocês passarem por algum, empurre Hiago, amarre um saco de milho na cabeça dele o expulse do supermercado.

Dito e feito. Quando entramos no supermercado, a primeira coisa que ele fez ao passar por aqueles ketchups foi colocar um no carrinho.

  • Não! Isso não vamos levar! Apenas extrato de tomate!

Levamos arroz, extrato de tomate, refrigerante, algumas frutas e verduras e um pouco de ração barata para Tio Lú, o cachorro doente. Eu notava como naquele supermercado, como alguns produtos não haviam sido lavados e foram jogados na geladeira imediatamente após terem sido tirados de suas respectivas caixas. Algo bem nojento.

  • Se eu tivesse um pouco mais de coragem, eu reclamava com esse pessoal, Hiago. É sério!

Na seção de frios, Hiago chegou a me repreender. Como ele era vegetariano, pelo menos naquele momento, chegou a discutir comigo que eu também não poderia comer presunto. Mussarela sim! Presunto, não!

  • Não vai levar isso não!
  • Hiago, eu respeito você por ser vegetariano. Respeite-me por eu comer carne! Eu não como bauru sem presunto!
  • Bauru? O que é isso?
  • Aqui vocês devem chamar de misto quente. É o pão de forma com presunto, mussarela e tomate.
  • Aqui não colocamos tomate no misto quente.
  • Muito bom saber.
  • Não interessa! Você não vai levar presunto.
  • Vou sim! Cento e vinte e cinco gramas de presunto, por favor. – disse ao “fatiador” de presuntos, que nas horas vagas também fatiava mussarela.
  • Não sei como vocês conseguem comer carne morta.
  • A carne viva é que eu não vou comer!

Depois de realizada a compra, pedimos que a entregassem no endereço de Larissa e fomos procurar algo para comer.

  • Onde você me indica para ter uma boa refeição, Hiago?
  • Lembra-se daquela padaria que fomos daquela vez com Erich?
  • Sim! Tem algum lanchinho lá perto?
  • Não! Estava falando de lá mesmo.

Quando estávamos quase chegando, Hiago apontou para uma placa do outro lado da rua.

  • Olha aquela placa ali, Álisson! Escreveram confiar com M. Olha só!
  • Onde? – perguntei.

Quando eu avistei a placa, uma manada passou bem em nossa frente. Depois, um desfile de gorilas e, por fim, um trem de ferro. Depois de toda essa mentira deslavada, finalmente consegui ler o que estava escrito:

Loja de celulares “comfiamssa”. Em nós, você pode “comfiar”.

  • É porque essa palavra vem do verbo “Com fio”, entendeu, Hiago?
  • Ah… Não!
  • Pensando bem, eu também não.

Quando rumamos para o outro supermercado para procurar o que estava faltando, nos deparamos com uma amiga de Hiago. Eles se cumprimentaram e assim foi o diálogo:

  • E aí, gatinho? Pronto para virar essa noite?

E ela passou um dedo pelo corpo dele como se o seduzisse. Eu olhava aquilo, meio de vela, sem graça. Por isso, fiquei de costas e fui vendo os carros passarem na rua. Se bem que, naquele momento, não havia passado carro algum.

Quando ela se foi, sem notar minha presença, logo fui perguntando:

  • Que intimidade, hein? Não vai me dizer que estão tendo um caso. – perguntei, brincando com aquela situação.
  • Nem rola. Ela é lésbica. – disse ele, normalmente.
  • Ah, então vocês formam um lindo casal. – Sorri.

E depois de todos aqueles comentários, fomos ao supermercado, depois comemos alguma coisa na padaria e entramos em outras lojas. Numa das revendedoras de certa marca de celular (não citarei qual para não criar qualquer vínculo), chegamos a discutir sobre um eletrônico que ele insistia comigo que não era um tablete, devido ao pequeno tamanho. Ele fez questão de perguntar para a vendedora que confirmou. Eu lá tenho culpa se aquele garoto só gostava de coisas grandes?

No final, entramos em uma daquelas lojas de perfume que tem por todo canto (não aquela que todo mundo conhece, mas uma menos conhecida), onde uma simpática e bela vendedora sentava-se atrás de um balcão.

  • E aí, vamos? – perguntei-lhe.

Hiago ainda tentou relutar para não entramos naquela loja.

  • Vamos lá! Você vai ver como é fácil tomar um banho de perfume sem pagar nada.

Enquanto entrávamos na loja, algumas pessoas apareciam na República Conosco, como Letícia, João e Izabella para fazerem trabalho. Quando perceberam que eu não estava, João e Letícia logo perguntaram para Larissa:

  • E Álisson, onde está?
  • Foi dar uma volta por nossa enorme cidade com Hiago.
  • Hiago e Álisson estão juntos? – perguntaram ambos, assustados.

Quem via de fora certamente teria a mesma reação. Como dois garotos que, até há pouco brigavam por quaisquer motivos andavam sossegadamente pela cidade?

  • Vai ver, eles precisam de um palco maior para se matarem! – concluiu João, dando mais um de seus sorrisos.

Na loja, experimentávamos alguns perfumes. Era um espirra pra lá, espirra pra cá, espirrada no olho, olho ardendo, vendedora sendo enforcada…

A cada respirada em um perfume, uma cheirada no café. Perfume um, uma cheirada, perfume dois, segunda cheirada. Como eu gostava muito de café, cheguei a ficar bons minutos cheirando aquilo.

  • Você não tem um perfume com cheiro de café não? – perguntei-lhe.
  • Como você consegue gostar de um cheiro ruim disso? – Hiago me perguntou.
  • Filho, para você ter uma ideia, quando as meninas que fazem a limpeza no meu serviço fervem água para o café, eu fico bons minutos na cozinha só para sentir o cheiro. Sou viciado! Mas, caso me pergunte, odeio tomar café.
  • Você é estranho! – ele comentou.
  • Você ainda não viu nada.

Aquela discussão também se fazia nos perfumes. Cada um com um gosto diferente: o que eu gostava, ele detestava e vice-versa.

  • Temos alguns perfumes sim com notas de café… – a vendedora começou.
  • Espera um pouco. Notas de café? Elas tocam em alguma banda? – perguntei.
  • Não, senhor! O caso não é esse…

Ela foi me explicando que cada perfume possuía determinadas notas de certos aromas até comporem o odor final. Para mim, leigo, era tudo água perfumada. Ou melhor, era “Água de Cheiro”.

  • Esse parece ser muito bom! – Pedi a ela um dos perfumes que me chamara a atenção. Ela o pegou e o espirrou em mim.
  • Não gostei desse também não. Parece essência de gambá! – reclamou Hiago.
  • É francês. Chama-se Le gambé. – comentei.
  • Mas, vocês não concordam em nada mesmo! – a vendedora comentou.
  • Quanto está esse? – perguntei.
  • Ah, não! Você não vai levar esse fedido não, né? – Hiago continuou.
  • São 56 reais. – disse a vendedora, enquanto um tijolo caía em minha cabeça.
  • É, não vou não, Hiago. Também achei muito fedido. – comentei, referindo-me ao valor do produto.

Fomos para a seção de perfumes femininos. Uns muito doces, outros com um aroma perfeito para a mulher, é claro.

  • O que você acha desse perfume? – A vendedora perguntou a Hiago.
  • Esse é muito bom! – ele comentou.
  • Então! Ideal para você dar à sua namorada! – a vendedora estava tentando Hiago.
  • Eu não tenho namorada. – disse Hiago, cabisbaixo.
  • Quando você tiver uma. – comentou a vendedora, tentando reanimá-lo.
  • Não tenho e nem vou ter. – continuou Hiago.
  • Por quê? – perguntou a vendedora meio preocupada.
  • É porque eu não gosto. – E Hiago encerrou o assunto por aí.
  • Ah, sim! – respondeu a vendedora, sorrindo sem-graça.
  • Esse eu não gostei. Eu não daria para uma namorada minha, mesmo que ela gostasse. Até porque quem vai cheirá-la sou eu! – Machista, eu? Nem um pouquinho.
  • Realmente, você tem que dar algo que agrade a você! – Disse a vendedora, tentando me passar a perna para vender o produto, enquanto quase o enfiava em minha cara.
  • Não, eu também não tenho namorada. – comentei com um sorriso meio amarelo.

Ela aproveitou para mostrar outros produtos.

  • Gostaram de algum? Vamos levar um, vamos! Baratinho!

E ela continuou a espirrar alguns perfumes, enquanto Hiago e eu discordávamos.

  • Esse é meio doce.
  • Assim é que é bom.
  • Meu Deus! Eles não concordam com nenhum! – disse a vendedora caindo na risada.
  • Queria levar esse aqui – mostrei a ela aquele mesmo perfume que Hiago tinha dito ter essência de gambá – mas, está muito caro. Não tem um mais barato não?
  • Eu tenho o desodorante. Custa apenas R$ 15,60.
  • Faz a quinze? – pechinchei.
  • Não posso. O patrão vai me matar! – ela fez carinha de ‘por favor, não faça isso comigo, eu imploro’.

“Oh!” – pensei. “Que rostinho mais bonitinho!”. Mesmo assim, não deixei me levar. Se ela quisesse me vender, teria que fazer o desconto que eu estava pedindo.

  • Já que não tem outro jeito. – e lá foi ela embrulhando o desodorante, para eu levar.

Quando saímos da loja, ainda comentei com Hiago.

  • Sabe de uma coisa? Eu nem queria comprar nada. Mas, aquele rostinho me encantou e só com a simpatia ela me ganhou. – dizia eu, nas nuvens.
  • Eu acho que ela pensou que éramos um casal – Hiago me fez despencar das nuvens em apenas um segundo.
  • Deixe isso poluir os sonhos eróticos que ela tiver. – brinquei.

Era esse o fim do passeio. Logo depois, fomos para a casa, onde os meninos continuavam a fazer o trabalho. Eu jogava Nintendo DS, no meu cantinho, enquanto os meninos proferiam palavras que, na minha opinião, eram palavrões.

  • Temos que fazer a GD, isso vale nota! – gritava João de um lado.
  • João? – puxei João para perto de mim, pela manga da camiseta – O que é um GD?
  • Grupo de discussão! – disse ele, sorrindo, mas quase caindo em mim.
  • O que você achou de nossa bela e maravilhosa cidade? – ele me perguntou.
  • Feia e horrorosa. – comentei – Mas gostei dela. Virei para cá mais vezes.

No fim do dia, tomamos um lanchinho. Larissa fez a pipoca (de micro-ondas), enquanto Brunna fazia o suco (com pó de gelatina). Para piorar a situação (vocês perceberam que nesse dia tava crítico, né?) e após Larissa queimar alguns pães de queijo, o pessoal pediu para eu preparar o café:

  • É, filho! Vai fazer o café que você não está fazendo nada! – disse Letícia, brigando comigo.

Eu poderia muito bem arrastar a cara dela no chão vermelho daquela sala, mas, não! Eu precisava mesmo atender aos pedidos dela! No final, meu café ficara doce e ralo. E o mais importante: Letícia tinha ido embora antes mesmo de provar o meu café! (Minha vingança não seria feita naquele dia).

  • Vívian, não tome o café! Ele está terrivelmente doce. Não vai te fazer bem. – Ainda alertei.
  • Tudo bem! Hmm… está uma delicia! – disse ela provando um pouco do café.

Minutos mais tarde, perguntei à Larissa se ela não tomaria um pouco, enquanto Vívian tremia como se sofresse de epilepsia, no chão, atrás de mim.

  • Não, obrigada! Estou bem desse jeito! – disse Larissa, evitando meu café, enquanto Vívian começava a ter convulsões sérias.
  • Vívian está passando mal! – gritava Paulinha.
  • Ah! – disse eu, olhando para trás e ignorando a cena completamente, voltando à Larissa.
  • Quando eu estiver passando mal, dê mais valor! – disse Vívian, levantando-se e me empurrando no chão, saindo de cena logo em seguida.
  • Alguém entendeu alguma coisa? – perguntávamo-nos.

À noite, o pessoal ainda fazia um pouco de trabalho. Hiago, em sua casa, chegou a perguntar à Larissa se eu poderia passar um pouco por lá. Relutei um pouco.

  • Estou morrendo de preguiça de subir aquelas enormes escadas – comentei.

Mas, ele insistiu, e resolvi ir para lá, mesmo depois de o relógio marcar meia-noite. Aproveitamos para ver os shows de Paula Fernandes que ele tinha gravado para treinarmos para o show que aconteceria dentro de dois dias. Como eu estava bem por fora, improvisava para cantar mesmo. Depois, aproveitamos para ouvir outras músicas e comparar nossos gostos musicais que, dessa vez, combinavam mais que os de perfume. Finalmente, nos tornávamos amigos.

Na rua, Sol continuava a vagar sem destino. Ela estava com fome e com frio, mas não com sede, após tomar um pouco da água empoçada que havia em um dos buracos. Sol já se arrependera de ter deixado aqueles cuidados que tanto lhe proporcionaram conforto, até que algo lhe fez mudar de ideia: um cachorro, alto, forte e num carrão importado. Ela entrou de carona e foi logo ordenando:

  • Pisa fundo, meu cachorrão!
  • Vamos para o baile funk, sua cachorra.

Do outro lado da cidade, a vendedora de perfumes discutia com seu patrão por ter descontado sessenta centavos do perfume que ela me vendera. Sim! Eles discutiam às três da manhã, e nem casados ou namorados eles eram. Nem sequer amigos.

Voltei para a casa muito tarde tentando fazer o menor ruído. Faltava apenas duas horas, mais ou menos, para o dia começar a clarear. Dormiria pouco para a viagem de amanhã e aquilo não seria bom. Tudo bem, essas coisas acontecem!

Quando entrei em casa, tirei os chinelos e fui andando sorrateiramente. Larissa havia me entregue as chaves, mas como as portas eram muito duras, ficava quase impossível não fazer qualquer ruído. E tudo acontecia como as Leis de Murphy: quanto mais eu tentava fazer silêncio, mais barulho eu conseguia fazer.

O escuro também não ajudava. Depois de ter feito um estrondo com a porta de entrada, bati meu dedinho no pé de uma das cadeiras de ferro que se encontravam frente ao quarto de Vívian. O barulho foi feio, mas não tanto quanto a ferida que havia aberto. Eu pulava tentando não gritar de dor, mas já era quase inevitável não terem percebido. Vívian levou um susto, mesmo não ter levantado da cama, os cachorros latiam e as três garotas, Tchely, Brunna e Paulinha que dormiam juntas, caíram da cama, uma em cima da outra, seguindo do grito de Paulinha, que chegou a ficar embaixo.

Ainda pensando que eu não havia acordado ninguém, continuei o meu caminho para o quarto de Larissa. Champignon chegou a sair do quarto para me dar uma boa cheirada. Com medo de não ouvir mais qualquer latido, decidi não fazer qualquer movimento brusco. Ao abrir a porta do quarto de Larissa, tentando parecer o mais silencioso possível, eis que a garota se mexe, aponta o celular em minha direção e acende a sua luz. Com aquela claridade, comecei a derreter.

Quando Alice começou a lamber meus restos mortais, lembrei-me de que não era um vampiro e voltei ao normal. Larissa ainda tentava identificar o ser estranho que continuava parado ali na porta, mas não se lembrava de que tinha uma visita em casa. Resolvi esclarecê-la:

  • Relaxa, sou eu!
  • Eu quem? – ela perguntou. Mas, antes que eu pudesse responder, ela já caía de sono.

Para a minha sorte, ela não chegou a pensar que era algum estuprador, sequestrador ou coisa do tipo. Talvez, se realmente fosse, ela estaria mais segura. Coitadinha!

Fui já deitando na cama, puxando lençóis, travesseiros, cobertas e empurrando os cachorros que se encontravam no meu caminho. Foram horas difíceis. Mesmo com tanto sono, só consegui dormir depois de um bom tempo. Mas aí…

  • Levanta, Álisson! Precisamos ir pra faculdade. – O novo dia começara.


Mais ou Menos Salinas (3)

Capítulo 3: Conhecendo o instituto

Era uma vez, uma gata xadrez que andava pela rua seis. Essa gata estava à procura de alguma comida para seus filhotes. Quando um motoqueiro passou, ela pulou em sua garupa, mesmo sem saber o destino. E lá foi o pobre felino tentando se segurar naquele vento.

Era sábado. O motoqueiro estacionou no Instituto Federal do Triângulo Mineiro, campus Ituiutaba, onde estudava. A gata, ao perceber que estava no meio do mato, deu um tapa em sua testa, perguntando-se onde teria se metido. O jovem motoqueiro caminhava para sua sala, onde fazia sua pós-graduação.

E lá também estava eu. Duas semanas depois de ter perdido aula, sentado ao lado de uma antiga amiga de faculdade, Carolina. Eu contava a ela sobre as coincidências da vida:

  • Larissa me ligou esses dias. Disse que conseguiu passar numa federal também.

Larissa também estava empolgada. Assim como eu, ela passara em uma federal, o Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, campus Salinas, e também perdera duas semanas de aulas.

Coincidências ou não, nossas histórias, mesmo estando tão distantes, se assemelhavam. Com a faculdade não era diferente. E, como eu já havia recebido um convite da garota, era mais que justo que um dia eu fosse conhecer o outro IF.

  • E você vai ver, Carolina. Um dia eu irei conhecer sua faculdade.

E lá estava eu, cinco meses depois de ter dito essa frase. Antes, eu e Larissa disputávamos pra ver qual era a pior:

  • Ah, você tinha que ver nossa biblioteca! – dizia ela – Uma vergonha para uma federal!
  • Pelo menos a sua tem livros! – dizia eu.
  • Ah, mas a nossa é uma fazenda! – ela continuava.
  • Sim, mas a nossa é puro mato. E só tem dois pavilhões. – eu insistia.

Aquela discussão parecia não ter fim. Mas, naquele instante, nada disso importava. Era indescritível a sensação de estar pisando ali. Poderia não ser o melhor lugar do mundo, mas para mim pouco importava. Era um sonho que, finalmente se realizava.

  • Conhecer o IFNMG, feito! – disse para mim mesmo, riscando essa informação de um pedaço de folha de caderno, antes de voltá-la para o bolso.

Sim! Eu estava tão empolgado de estar ali, que resolvi mandar uma mensagem para Carolina naquele instante. Os dizeres “Estou no IFNMG” mal saíram de minha caixa de saída e eu já sacava minha câmera do bolso para tirar fotos, com intuito de lhe mostrar quando voltasse. No mesmo instante, Carolina pegou seu celular do bolso, leu a mensagem e anunciou para todos que estavam ali perto:

  • Ele conseguiu! – era o que ela dizia, enquanto todos da rua, estranhos a ela, olhavam-na com cara de “que retardada!”.

Mas, antes de falarmos do lugar, vamos voltar ao início do dia.

Seis horas da manhã, o telefone de Larissa começava a tocar. E eu pensando que, naquelas férias, não teria que ser obrigado a levantar tão cedo! Como estava em seu quarto, ela já foi logo me perguntando enquanto eu abria os olhos:

  • Você vai pro instituto?
  • Sim! – dizia eu, meio a murmúrios.
  • Então, levante-se para não chegarmos atrasados. – e ela atirou uma almofada em mim, pouco antes de Champignon subir na cama.

Levantei-me, troquei de roupa, penteei o cabelo, tomei café, escovei os dentes, peguei a câmera, o DS, a carteira e tudo mais que eu tinha direito. Quando estavam quase todos prontos, Hiago tocou a campainha e entra. Vívian bate no quarto de Tchely, perguntando se ela iria conosco:

  • Pode ir na frente, eu pego um táxi depois! – E voltou a dormir, rolando e derrubando Paulinha no chão.

Então, fomos Larissa, Vívian, Hiago, Brunna e eu para o ponto de ônibus. Quando ele parou, subimos. Recebi logo uma “facada” quando soube que precisava pagar 75 centavos pela passagem. Tive vontade de dizer à cobrada que dinheiro não nascia em árvore, mas deixei para lá, já que eu estava em Salinas.

E lá fomos. No ponto seguinte, João e Letícia subiram. O coletivo já estava bem lotado. Alguns iam em pé e outros sentavam em colos alheios. Larissa aproveitava a ocasião para me apresentar alguns colegas:

  • Tá vendo aquele cara ali sentando ao fundo? É João Pedro! – dizia ela, enquanto apontava.
  • Larissa, não aponte para aquele garoto! – apontei também – Já pensou se ele diz alguma coisa? – João Pedro viaja profundo em seus pensamentos, enquanto olhava para fora do ônibus.
  • E aquela ali… – continuava ela, enquanto apontava.

Ao fim da cidade, o instituto se encontrava. Era um lugar interessante de se ver, principalmente para quem ia apenas a passeio. Era notável, pelos prédios, que o instituto já possuía alguns anos de vida, ao contrário do que eu imaginava, já que o IFTM não completara nem cinco anos de funcionamento.

Ao descermos da condução, encontramos mais alguns centos de jovens desesperados, por estarem em época de provas. Entre elas, Catarina, que eu havia conversado noite passada, via internet.

  • Ah! Você é o Álisson? Muito prazer! – dizia ela, enquanto me cumprimentava com um beijo no rosto.

E lá fomos nós, subindo para a sala de aula, ladeados por um enorme grupo de estudantes desesperados em época de provas.

  • Vocês estudaram? Estou com muito medo dessa prova! Uma das mais difíceis que já fizemos até agora!
  • O capítulo 14! Eu não estudei o capítulo 14!
  • Alguém viu minha aranha? Ela estava aqui agora há pouco!
  • Aranha? Aaah! Socorro! Tem uma aranha dentro da minha calça!
  • E você não é a única, bobona! – dizia um enorme travesti que passava por ali.

Era engraçado ver tamanho desespero. Lembrava-me dos meus tempos de faculdade em que, segundos antes da prova, eram tempos preciosos para tentar absorver o máximo de informação possível.

Enquanto subíamos a pé, o professor Leonardo passava de carro sem olhar para os lados. A prova, nesse dia, era dele. Talvez tenha sido por isso que ele preferiu não dar moral para ninguém.

Quando chegamos à sala, o pessoal se despediu de mim e entrou. Alguns pediram que eu entrasse e fizesse a prova por eles. O que seria melhor para qualquer um ali da veterinária, já que sou formado em Sistemas de Informação.

E lá estava eu, sozinho, sem ninguém. Não pude deixar de reparar que aquele lugar parecia uma fazenda mesmo, com prédios antigos, barro e mato por todos os lados, além de vacas, porcos e bezerros misturados a tantos outros animais, que me fazia sentir como um também. Então, para conhecer melhor o lugar, fui dar uma volta.

Larissa já estava avisada: Quando terminasse a prova, era para me dar um toque e eu retornava à sala de aula. Isso se eu não me perdesse no caminho. Pensei até em comprar um pãozinho para ir jogando pelo chão para fazer uma trilha, mas achei isso muito “João e Maria”. Então, resolvi deixar para lá.

Agora, contarei a vocês um pouco do que vi. Um barracão ainda não terminado cercado por tantos pneus velhos, que dava até medo de olhar e encontrar alguns ovos de certo mosquito periculoso, envolto por mato queimado. Depois, tirei fotos de algumas árvores que embelezavam o local. Lá também poderiam ser visto algumas hortas, alguns bezerros e até um campo de futebol. Também se viam tratores, um pequeno lago e uma bela paisagem dos morros de Salinas.

Era de se encantar aquela vista. Em minha terra, uma vista como aquela não era comum. Então, aproveitei cada momento.

E eu sujei o meu tênis. Aquele tênis branco já não seria mais o mesmo. Como eu já havia dito, apesar de uma paisagem tão bonita como aquela, encontrávamos mato, terra e buraco em todos os lados. Até carroceiro passava às vezes por ali.

Nem percebi quanto tempo passara. Quando vi, o relógio já sinalizava oito horas. Para me ajudar a voltar ao meu destino, um rastro de cavalo me apontava a direção. Já chegando à sala, Larissa me dava um toque no celular indicando que terminara a prova. Não precisei atendê-la, pois já estávamos à vista do outro.

  • Como foi de prova? – perguntei-lhe.
  • Fechei! Uhul! – ela comemorava.
  • Conseguiu fazer todas as questões? – sentei-me ao lado dela.
  • Sim! Era pra eu ter ficado mais um pouco lá dentro, mas parece que ninguém consegue me entender! Eu posso gritar que ninguém vai saber colar a resposta.
  • É porque você tem que mandar um SMS com a palavra cola, para que eles possam receber dicas de como colar. Eu já te ensinei isso.
  • Ah! Eu não me lembrava. – dizia Larissa, antes de atirar sua cara na lama, de vergonha.

Aos poucos, a galera foi aparecendo. João, nesse instante, apareceu com um largo sorriso para meu lado.

  • Pela cara, você foi muito bem!
  • Que nada! Me ferrei! – dizia, sem apagar o sorriso.

Letícia também apareceu. Aproveitei para tirar uma foto dela. Ela me correspondeu de forma muito bela: levantou seu maior dedo e o apontou para mim. Tive vontade de respondê-la, mas deixei para lá.

Tchely também saíra. Ao vê-la, quase caí para trás. Ela não estava no ônibus e eu não a vi entrar na sala. Então, como ela foi parar ali?

  • Você nunca saberá! – dizia ela, demonstrando um sorriso maléfico, demonstrando que acabara de ler meus pensamentos (ou, talvez, apenas o script do presente filme).
  • Foi bem de prova? – perguntei, voltando ao normal.
  • Não! Você não quis fazer a prova para mim! Por que você não quis fazer essa prova? Por quê? – ela dizia cada vez mais alto, enquanto me chacoalhava, fazendo minha cabeça bater no cercado de madeira.
  • Minha querida Tchely. Venho por meio desta, informar-lhe que a prova realizada até há pouco não se encontrava de nível de dificuldade inferior como a prova subsequente que, acredito eu, será. Portanto…

Neste momento, levantei-me, olhei fundo nos olhos dela, aproximei-me bem devagar e fui alterando o volume de minha voz cada vez mais:

  • PARA DE ME DEGOLAR!

Sempre aprendi que termos como “Venho por meio desta” não é correto de se dizer. Mas, dizendo em voz alta, aquilo soava tão formal, que decidi deixar assim mesmo.

Depois, saíram João Pedro e Camila, um dos casais da turma. Como todo bom namorado, João Pedro sentou-se em um toco e Camila sentou-se em seu colo. E foram discutir as questões. Como eu não era participante, fiquei apenas de expectador.

Neste instante, foi a vez de Arthur sair. Ele veio correndo e logo foi perguntando à Larissa:

  • O que você respondeu na segunda questão?
  • Lente ou cristalina.
  • Cristalina? Eu só pus lente! Eu me esqueci da cristalina! Eu não acredito que me esqueci da cristalina!
  • Vamos deixar esse maluco aí? – Larissa sussurrava para João, Letícia e Vívian, que também já estava lá.

E lá fomos nós, enquanto Arthur não parava quieto.

Enquanto caminhávamos em direção ao pátio, João e eu trocávamos algumas ideias:

  • O que você ficou fazendo esse tempo todo?
  • Estava andando pelo instituto para conhecer!

Tirei minha câmera do bolso e a entreguei para que ele pudesse ver as fotos que havia tirado.

  • Gostou do que viu?
  • Sim! Aqui é muito legal! Apesar de parecer uma fazenda mesmo. Vocês devem se sentir muito em casa.
  • E como! Aqui é maravilhoso, com tantos bichos, tantas árvores, tanto… argh!

João parou de falar, ao pisar num monte de esterco de cavalo. O mesmo rastro que me guiara para a sala de aula.

  • Mas, por que aqui tem tanto prédio antigo? – disse eu, ignorando o fato acontecido e o puxando pelo braço direito.
  • Aqui era uma escola agrotécnica, com alguns cursos técnicos e ensino médio. Também temos muitos cursos superiores, mas a nossa é a primeira turma da medicina veterinária.

E então, João começou a nos apresentar alguns lugares.

  • Como você pode ver, ali estão as quadras. Ali, encontramos a biblioteca. Em frente, a direção, depois a secretaria e ali fica o pátio. Ah! E ali, encontramos uma coisa que, com certeza, é de seu interesse: o laboratório de informática!
  • Uau!
  • E, acredite! Tem computadores lá dentro!
  • Uau! Êpa! Peraí, Joãozinho. Aquele laboratório está em reforma! – falei, indignado.
  • Ele só estava querendo te impressionar, bobo. Não temos laboratório de informática não! – dizia Letícia, estragando o momento feliz de João, mesmo sem desfazer seu sorriso eterno.
  • Temos um sim, ok? – falava João, com voz alterada para Letícia! – apesar de serem computadores bem antigos e não ligarem, existem computadores naquele laboratório!
  • Ah! Entendi! Laboratório de manutenção de computadores! Na minha antiga faculdade tinha um! – eu disse a ele.
  • Não. O laboratório é para consultas do aluno mesmo. – completava João.

Preferi ignorar. Então, ele continuou a representar o papel de meu guia turístico.

  • Essa escola já tem mais de 50 anos. Mas, há pouco tempo, tornou-se o Instituto Federal de Ciências e Tecnologia do Norte de Minas Gerais. Coisa de gente fina.

Olhei para João de cima a baixo e confirmei o quão fino ele era. Sim, ele era magrelo.

  • É! Você tem razão!

E lá foi nosso grupo se deslocar para a praça de alimentação. Pensei que fosse algo grandioso, mas era apenas uma pequena janela com uma moça dentro, oferecendo alguns salgados de frango e presunto para os alunos, em troca de um real e vinte e cinco centavos. Enquanto isso, duas alunas da veterinária conversavam ali perto:

  • Meu pai tem um granjeiro. Esses dias, uma das nossas galinhas ficou doente. Tentamos de tudo para salvá-la. Eu a amava tanto! Mas, não conseguimos. Chorei muito quando papai me deu a notícia.
  • Que coisa triste, amiga!
  • Muito triste! Tivemos que sacrificar o pobre bichinho.
  • Pobre galinha! – dizia a garota, enquanto ambas davam uma bela mordida numa empada de frango.

Ao lado, também estava uma pequena roda do grupo de veterinária. Aproximamos. Notei que havia um pátio ali do lado. Alunos de outras turmas encontravam-se ali, mas o papo da turma de cá estava mais animado.

  • Galera, alguém sabe quando vamos pra Montes Claros? – perguntava Tâmara.
  • Ouvi dizer que na quinta-feira. O ônibus vai sair bem cedo. – dizia Peu.
  • Mas, vamos antes ou depois da prova? – perguntava Tâmara.
  • Antes. Aí vamos para Montes Claros e voltamos para fazer a prova. – respondia Peu.
  • Ai, Peu! Larga de ser grosso! – respondia Rhangnys.

Sim! Esse é o nome da garota. Até hoje, não se descobriu a origem disso.

  • Como as turmas vão ser divididas? Larissa? – Virou Izabela para Larissa, no mesmo instante – Você vai ceder sua casa, não vai?
  • Sim! Mas, ate agora não deu nem cinco pessoas.
  • Quem já confirmou?
  • Até agora Hiago, João, Letícia e Álisson.

Por um momento, Izabela passou na cabeça todas as pessoas da sala para ver se se lembrava de algum Álisson. Aí, ela me viu e continuou:

  • OK! Pode confirmar meu nome também!
  • Tudo bem, então! – E Larissa tirou um pergaminho e uma pena de seu bolso. Virou-se para a balconista e lhe pediu um pouco de nanquim.
  • Toma, sua velha! – E a mulher educada entregou-lhe uma caneta, que Larissa teve que sair riscando pelo papel inteiro, para ver se saía alguma tinta.

E a animada conversa já continuava:

  • O pessoal vai mais é para a casa de Camila. Acho que vão ser dois ônibus.
  • Cês tão doidos? Mãe minha não vai gostar disso não! – dizia Camila, aumentando seu sotaque baiano.

‘Mãe minha’, ‘mãe minha’, ‘mãe minha’, pensava eu. Que cacofonia! Era só falar rápido que se entendia outra coisa. ‘Mãe minha’.

  • Casa de Camila, de Larissa, de quem quer que seja! Eu quero é ver o show de Paulinha Fernandes. – dizia Ítalo, eufórico.
  • Ah! O show daquela mulher deve ser tudo de bom! – dizia Brunna.
  • Sem contar que ela tem belas pernas! – dizia João Pedro, recebendo um leve tapa de Camila no braço, após o comentário.

E ele a beijou em seu rosto, como símbolo de pedido de desculpas quando Arthur aparece, entra na roda e fala para todos escutarem:

  • Eu esqueci a droga do cristalino! Como eu pude esquecê-lo?- dizia ele, indignado.
  • Toma! Te empresto o meu.

Davi foi muito legal, ao pegar a colher, tirar seu próprio olho e entregá-lo, por completo, ao jovem Arthur, que ficara muito agradecido.

  • Nós aqui, falando de Expomontes, e Arthur preocupado com o maldito cristalino.
  • Mas, eu até agora não acredito de ter me esquecido de colocar o cristalino na questão número dois da prova. E, Davi, por favor! Seu olho é muito pequeno para mim!

Enquanto Arthur devolvia o olho de Davi, a galera voltava ao interessante assunto em que estavam. Do outro lado, meio isolados, Larissa e eu apenas prestávamos atenção na conversa. João, que estava do nosso lado, sentindo seu estômago reclamar, pediu uma empada de frango à balconista. Após esperar que ela fosse ao freezer, tirar uma empada congelada, colocá-la no forno micro-ondas por breves 30 segundos e retornar o troco para uma nota de cinco, lá estava João, olhando demoradamente para a empada antes de lhe dar uma mordida.

  • Que foi, João? – perguntou Larissa.
  • Quando eu olho para essa empada, dá uma saudade da comida da mamãe!
  • João! Você mora com sua mãe! – dizia Larissa, indignada.
  • O dia que você comer essa empada, me entenderá! – dizia João triste, mesmo com um sorriso no rosto.
  • O que essa empada tem de mais? – perguntei-lhe, curioso.
  • É cara e gelada. A vendedora tem preguiça de esquentá-la. Faz e deixa no freezer por uma noite. Na manhã seguinte, ela só tira para esquentar quando alguém pede. Se você morde, vai encontrar uma enorme pedra de gelo. Mas, se você der alguma sorte, a pedra terá se descongelado e sua empada estará ensopada. Qualquer dia desses, você experimenta uma e me diz o que acha.
  • Eu ouvi isso! – disse a balconista, irritada.
  • Sua mãe nunca te disse que é feio escutar conversa alheia? – perguntou Larissa.
  • Quem é você, sua grossa? – perguntou a balconista, irritada.
  • Não te interessa! E para de escutar a conversa dos outros!

Ouvindo isso, a balconista apontou língua para a garota.

  • E toma a sua caneta! – Larissa atirava-lhe a caneta de volta, acertando-a na testa.

Para evitar qualquer briga, saímos dali. A mulher tentava pular pela janela, mas João fez o favor de empurrá-la de volta, fazendo-a cair. Quando ela estava se recuperando do tombo, outros alunos apareceram, pedindo mais lanches. Então, a balconista preferiu desistir, mas não antes de jurar vingança para o dia seguinte.

  • Quantas horas são? – Larissa me perguntava
  • 9h18.
  • Vívian! Que horas os ônibus saem? – perguntou Larissa, ao ver Vívian e Letícia se aproximarem.
  • Já estão quase saindo!
  • Vocês vão agora? Não vou ficar aqui mais não, nada pra fazer mesmo! Onde está Hiago? – continuou Larissa.
  • Deve estar beirando aquela Girafa Desmiolada.

Vívian estava xingando uma de suas colegas que tanto detestava. Para piorar, ainda brigou com Larissa na noite passada por ter passado cola a ela. Como aqui pretendemos preservar cada personagem, não diremos que ela se referia à Catarina.

  • Você não passou cola para ela de novo não, né?
  • Não! Ela é muito lerda! Não sabe nem pegar uma cola.
  • Você é muito malvada! Passa cola para ela e não para os amigos.
  • Vívian, você tem que entender que, no futuro, ela não vai ser uma boa profissional se continuar colando! Imagina só, você sendo uma grande veterinária e ela dona de um pet shop.
  • Não quero nem saber! Você tem que me passar cola.

E nós continuávamos nosso passeio. Próximo aos ônibus, lá estava Hiago abraçado à Catarina pelas costas, enquanto cheirava seu pescoço. De longe, parecia uma tentativa de beijo.

  • Hiago! – gritava Larissa – Você vai agora?
  • Vou!

Hiago e Catarina se despediram e ele veio ao nosso encontro. Estava muito feliz, até aquele momento, exatamente por ter ficado tanto tempo distante dele. Como evitá-lo era inevitável, o jeito foi me acostumar.

Mais 75 centavos. Mas, dessa vez, o ônibus estava vazio. O que me deixava mais feliz era saber que eu estava roubando o lugar de Hiago, sentando-me ao lado de Larissa. Ele teve que ficar lá, ao lado de Vívian.

Ao contrário de nossas saídas em Belo Horizonte, Larissa, em Salinas preferia sentar-se nas primeiras cadeiras, geralmente mais baixas. Na capital mineira, sempre sentávamos ao fundo, na cadeira mais alta. Talvez porque ela gostava de se sentir mais alta, ou de ver os outros de cima, nunca entendi muito bem.

Então, começamos a andar. Como acontece em todo seriado sem-graça, uma professora gordinha saiu da secretaria, correndo, tentando alcançar o ônibus, que não parava. E ela gritava para o motorista ouvir. Todos os alunos perceberam e começaram a gritar para que o motorista pudesse parar, mas em vão, já que ele usava fones de ouvido. Entretanto, para a sorte da professora gorda, o motorista percebeu pelo retrovisor algum alvoroço em seu ônibus e olhou para trás. Percebeu a professora nesse exato momento e freou. Mas, isso não impediu que a pobre senhora entortasse seu pé e caísse de cara na lama.

Pobre professora. Atrasada, desajeitada e gorda. Isso já está tão clichê nas histórias de comédia que era preciso colocá-la aqui. Os alunos a olhavam assustados, enquanto ela não conseguia se levantar. O motorista levantou-se de sua poltrona e ficou parado por um bom tempo para ver se algo acontecia. Mas, nada acontecia.

O motorista olhou para todos os alunos. Eles retribuíram. Um esperava a reação do outro, mas ninguém se mexia. Lá fora, alguns professores saíam de suas salas e via aquela cena. A professora caída nem se mexia. Os outros professores estavam boquiabertos, mas também não se mexiam. Será que a pobre professora morrera ali mesmo? E por que ninguém se mexia para ajudar a pobre senhora?

O motorista deu uma última olhada para os alunos. Foi até a janela e perguntou aos outros professores:

  • Essa mulher está bem?

Não se ouvia qualquer som. Em vez disso, os professores apenas faziam sinal indicando que não sabiam. Então, percebendo que não adiantaria, o motorista voltou-se à sua poltrona, colocou novamente os fones em seu ouvido, ligou a máquina e lá fomos nós pela estrada.

Estávamos tão empolgados de, finalmente, estarmos em curso, que até pensamos em cantar “um elefante incomoda muita gente”, mas resolvemos parar ao ver a cena se repetindo: a professora estava em pé novamente e voltava a correr atrás do ônibus. O motorista logo percebeu aquilo, por isso, pisou fundo no acelerador para deixar logo os portões do instituto. E foi assim que a professora perdera sua carona para casa.

  • Tudo bem! Vou entrar naquele que ainda está parado ali! – dizia a professora, enquanto tirava o excesso de lama da cara.

Não foi uma longa viagem e o caminho sempre era o mesmo. Por isso, aquele foi mais que tempo suficiente para eu ter tido uma boa lembrança da cidade. Salinas era sim uma cidade pequena, mas que trouxe tantas lembranças que eu seria capaz de escrever um livro sobre o que eu passei lá. Quem sabe algum dia.

Descemos no ponto. Chegamos e não eram nem 10h ainda. Quando entramos em casa, além dos cachorros que nos recebiam latindo, lá estava Paulinha varrendo a casa.

  • Que menina prendada! Está solteira? – arrisquei.
  • Pra você, não! – e ela continuou a varrer como se nada tivesse acontecido.

E aqueles cachorros pulavam. E como pulavam! Cachorros eram as únicas coisas que eu estava vendo naquele momento, depois de um fora desses.

Então, as garotas trocaram suas roupas e lá foram fazer a faxina de casa. Larissa ficou por conta de arrumar seu quarto e, para meu azar, eu precisava ajudá-la, já que era ali que se encontravam minhas malas.

Vívian foi lavar as louças. Ela me contava como gostava de ajudar as pessoas, mesmo quando não fosse necessário:

  • Sabe, Álisson. Aqui, as meninas me tratam como se fosse uma mãe! Porque quando elas estão doentes, eu que fico louca atrás de remédio, de levá-las para o hospital, eu que…
  • Você que sai entupindo as meninas de remédios, mesmo que elas só deem uma tossezinha… – interrompi.

Vívian me olhou com uma cara não muito boa.

  • Que foi? – tentei consertar – É assim que mamãe faz comigo!

Passado alguns minutos, Brunna entrou em casa. Naquele dia, o almoço foi por conta dela. Sim! O almoço foi por conta dela. Então, ela entrou, trocou de roupa, foi para a cozinha, tirou as panelas da dispensa e começou sua obra de arte.

  • Da próxima vez, você é quem fará o almoço! – dizia Paulinha, sorrindo para mim.
  • Minha cara Paulinha! – disse-lhe, colocando uma de minhas mãos em seu ombro – Você tem certeza do que está dizendo?
  • Claro que sim! Aí veremos se você está pronto para se casar!

E ela virou as costas para mim e saiu da cozinha. Eu ainda estava tentando entender o que foi aquilo depois do fora, quando ela gritou lá da sala:

  • Mas, não comigo!

‘Ah!’ – exclamei em pensamento.

Quando Brunna desligou o fogo da última panela, ela perguntou:

  • O almoço está servido. Quem será o primeiro?

Aquela mesma reação do dia anterior repetiu-se. Todos se entreolhavam, com medo. Era a primeira vez que a garota de Francisco Sá cozinhava para eles.

  • Não seja tímido, Álisson. Sirva-se! – e Brunna me entregara um prato duvidosamente limpo.

E lá estava eu me servindo. Como ninguém tinha opção, formaram uma fila atrás de mim. Mas, diferente de tantas outras filas, naquela encontrávamos apenas pessoas muito bem educadas:

  • Ah! Você pode ir na minha frente! – dizia Larissa à Tchely.
  • Que isso, amiga! Fique à vontade! – dizia Tchely, sorrindo.

Sim! Tchely novamente aparecera misteriosamente diante de nós. Talvez transportada por forças do além.

Após nos servirmos, sentamos cada um em um canto da cozinha. Eu e Larissa ladeávamos a mesa branca de plástico, Tchely sentava-se no chão, tentando empurrar os cachorros para longe dela, Vívian trouxera a cadeira que ficava em seu computador e Brunna sentava-se em um banquinho. Paulinha era a única que ficava em pé, na porta para a varanda.

Atrás de mim, uma mesa de passar roupas. Em cima da mesa, uma vasilha fechada de feijão inteiro. A vasilha estava tampada e a cor de sua tampar era cor-de-rosa. Nenhum animal foi morto para que aquele feijão pudesse ser feito. Bem, talvez algumas pragas que atacavam a colheita…

  • Gostou da minha comida? – Brunna me perguntava, após eu ter dado a primeira garfada de comida.
  • Ainda não experimentei direito! – respondi-lhe, tentando ganhar tempo.
  • E agora? – eu dei a segunda.
  • Ainda não!
  • E agora? – terceira.
  • Não!
  • E agora? – quarta.
  • Está sem sal!
  • Você quer sal, é? Você quer sal?

E lá foi Brunna nervosa para a dispensa. Pegou um pote pensando ser sal, mas era açúcar. E ela foi correndo, em câmera lenta, no rumo das panelas, jogar todo o açúcar na panela de arroz. Todos perceberam o que ela iria fazer, por isso, em uníssono e em câmera lenta, gritaram:

  • Nãããããããããããããããão!

E o herói do dia saiu correndo até Brunna, esbarrou sua grande cabeça peluda nas pernas de Brunna, fazendo o pote de açúcar voar, ainda em câmera lenta, enquanto escorregava por aquele piso vermelho fazendo seu chinelo de dedo voar por aquela cozinha. Enquanto Brunna caía, o pote de açúcar caía em minha cabeça. Tudo culpa de tio Lu.

  • É isso que dá, dizer a verdade. – Falei para a câmera que, nesse momento, já estava em velocidade normal.

Brunna, sentindo-se culpada de tudo isso, foi buscar um pano. Larissa, virou-se para mim e me disse, sussurrando:

  • Realmente! A comida não tem sal! Não vou mais me casar com ela!

Então, Brunna, após retornar, ajudou-me com o pote de açúcar, pediu-me desculpas pelo ocorrido e prometeu não mais cozinhar, enquanto eu estivesse ali. Um grande alívio para os presentes.

Foi assim que, naquele dia, o almoço conseguiu se livrar das garras do açúcar. Incidente que não pode ser evitado um mês depois, quando Paulinha jogou açúcar na batata frita no lugar do sal. Mas, isso é uma história que contarei em outra ocasião.

O sol já não estava em seu ponto mais alto. Quase todos naquela casa descansavam tranquilamente. Novamente, peguei o último livro da série Harry Potter, deitei-me no chão e comecei a lê-lo. Deitar-me naquele chão vermelho e gelado, no único lugar em que o sol entrava naquela casa era uma sensação maravilhosa. Contudo, como estava sem almofadas ou travesseiros, encontrar uma posição confortável não era nada fácil.

Vívian estava no banho. E não estava sozinha. Antes que alguém pense qualquer besteira, ela não estava com um homem. Ela estava tomando banho e dando banho na cachorra da Larissa. Antes que alguém novamente pense mal, ratificarei: era a poodle Alice.

  • Fica quieta, Alice! Deixa eu te dar um banho! Oh! Cachorra custosa!

Eu ainda não sabia se prestava atenção no livro ou na briga.

  • Alice, fica quieta! Sua cachorra desmiolada!

Eu ria. Aquilo tirou minha atenção por completo. O sono também não ajudava muito, por isso, fiquei de frente à parede e tentei tirar meu cochilo, naquele chão mesmo.

Quando já estava quase pegando num sono, Vívian aparecia na sala, segurando a cachorra e um secador, apenas enrolada na toalha. Ao ver aquele pequeno corpo estirado naquele chão, frente ao sol, logo pensou:

‘Que garoto maluco! Depois fica doente e não sabe o motivo! Eu tenho medo de ficar assim um dia. Você não tem medo também, Alice?’

Alice continuou encarando-a, como se nada tivesse acontecido.

‘Ah, é! Eu me esqueci! Eu estou apenas pensando! Alice não vai me compreender. Que burra eu sou!’

  • Au! – concordou Alice.
  • Cachorra! – resmungou Vívian.

Alice estava toda molhada. Muito engraçada para quem a via naquele estado. Vívian a levou para seu quarto e se trancaram ali. Ligou o secador e começou a sessão ‘seca cão’.

Assim como o banho, a sessão incluía altos gritos e xingamentos. A cachorra não parava quieta. Sempre que Vívian dava uma brecha, lá estava a pobre animal tentando fugir do quarto. Mas, Vívian conseguiu vencer aquela guerra.

Com toda aquela barulheira, não consegui dormir. Então, retornei ao livro. Quando estava em uma parte bastante interessante e toda a casa já estava em absoluto silêncio, eis que a porta da entrada começa a fazer um barulho estranho, como se estivessem arrombando. Era Hiago, que entrava sem qualquer cerimônia. Quando me viu, teve a mesma reação de Vívian, mas já foi logo perguntando:

  • Onde está Larissa?
  • No quarto!
  • Dormindo?
  • Não! Fazendo uma festa! – respondi-lhe, secamente.
  • Ai, que garoto grosso! Estúpido! Você não tem o que fazer não?
  • Eu tinha. Aí você apareceu!
  • Idiota! Não vou perder meu tempo com você não! Mais tarde eu volto, quando Larissa tiver acordado. Gutixau!
  • Guti quem? – Repeti para mim mesmo, ao vê-lo saindo de casa.

Então, adormeci.

Três horas depois, levantei-me, fui à cozinha e lá estava Vívian:

  • Conseguiu dormir bem?
  • Ah, mais ou menos! Mas, não queria ter dormido não! Odeio dormir à tarde.
  • Quando Larissa acordar, quero te levar para tomar o sorvete que tanto gosto, nós íamos ontem, mas, como vocês me deixaram sozinha naquela praça…
  • Ninguém mandou você ficar lá fazendo strip no meio da rua.
  • É Pole Dance!
  • Dá no mesmo!
  • Não mesmo! Mas, isso não importa agora! Vamos tomar sorvete! Mas, olha. Eu gosto muito do sorvete, mas não posso tomar muito, pois sou diabética.
  • O QUÊ?
  • Eu sou diabética. Mas, é controlada, então não faz mal tomar um pouco de açúcar de vez em quando. Quer café? Está sem açúcar.
  • Ah, obrigado! – Aceitei uma xícara e despejei um pouco de açúcar em minha xícara.
  • Alguém falou em café?

Larissa aparecera neste momento. Ela estava de pijama, com a cara amassada e com a voz mais aguda que o normal.

  • Você dormiu por dois dias e meio. – brinquei.
  • Droga! Não bati meu record! – dizia ela, entrando na brincadeira.

Nossa amizade era algo muito lindo. Fomos criados meio a ironia e sarcasmos, mas nunca nos deixamos de amar. Além disso, estarmos vivendo tão longe um do outro contribuía para que nosso amor ficasse cada vez maior, pois era assim que gostávamos de ter o outro: distante.

Eu poderia continuar a admirar aquele momento maravilhoso, mas algo me interrompeu. Novamente, Hiago estava ali. Não sei o que tanto aquele garoto fazia naquela casa.

  • Oi Larissa, Oi Vívian. Larissa, eu vim aqui mais cedo, mas esse idiota – ele apontou para mim – disse que você estava dormindo. Aí eu fui pra casa.
  • E de lá você não deveria ter saído – intrometi.
  • Cala a boca, seu imbecil! – disse ele, mais agressivo.
  • Que relação amorosa vocês dois! – comentou Vívian.
  • Ainda não entendi o porquê de vocês darem total acesso a ele. – continuei.
  • Porque você não volta para Uberrrlândia? – disse ele, imitando meu sotaque.

Admito. Meu sotaque é ligeiramente paulista. Minha tendência é forçar o R. Como o pessoal do norte de Minas tem o sotaque ligeiramente baiano, a diferença torna-se bem nítida.

  • Hiago. Tem alguém em sua casa agora? – apareceu Tchely, repentinamente, abraçando seu travesseiro.
  • Não! Você quer dormir lá? – perguntou Hiago.
  • A casa de Hiago é uma pensão? – perguntei, sem grosserias.
  • Sim! Quando aqui em casa está barulhenta demais, vamos para a casa dele, para dormir. É um silêncio tão bom! – respondeu Vívian.
  • Eu estava dormindo em meu quarto, mas acordei por causa da conversa de vocês. – disse Tchely.
  • Estamos falando tão alto assim? – perguntou Vívian.
  • Um pouquinho! – respondeu Tchely.
  • Pode ir lá! Toma minha chave! – E Hiago entregou a chave à mulher.
  • Larissa, disse ao Álisson que o levaria para tomar aquele sorvete que tanto gostamos. Você quer ir?
  • Sim! Vou só arrumar meu quarto e vamos até lá.
  • Você também vai, Hiago? – perguntou Vívian.
  • Com esse aí? – ele me olhou de cima a baixo – Não, obrigado!

Larissa foi para seu quarto. Acompanhei-a e Hiago também. Deitamos na cama dela e os dois começaram a conversar tranquilamente, quando eu voltei a intrometer.

  • Não sei como você o aguenta! – disse Hiago à Larissa.
  • Ela já se acostumou. Não vê que ela virou sua amiga? – respondi à altura.
  • Eu não estou em seu nível! – ele retrucou.
  • Precisa abaixar muito a idiotice para isso acontecer! – continuei.

Sem hesitar, ele pegou meu braço direito, virou-me contra o colchão e me prensou com seu joelho em minhas costas.

  • Repete se você for homem. – ele esbravejou.
  • A ignorância te deixou surdo? – provoquei, enquanto ele me apertava com mais força.
  • Prensar-me é muito fácil! – continuei – Eu não tenho força, sou bem magrelo. Quero ver você pegar alguém do seu tamanho.
  • Hiago, solte-o. Você está machucando. – Larissa disse, séria.
  • Então manda esse idiota parar de me implicar. – ele falou, nervoso.
  • Acostume-se comigo. Sou assim mesmo. – Dei-lhe um leve tapa nas costas e saí do quarto.
  • Depois conversamos, Larissa.

Hiagou despediu-se e foi para a casa. Ri de mim mesmo. Nem eu sabia o que estava fazendo.

Vívian apareceu na sala. Perguntou-nos se estávamos prontos. Partimos. Passeamos rápido pela cidade e já estávamos na sorveteria.

  • Hoje é por minha conta! – E Vívian nos pagou uma rodada de sorvete.

Já estava anoitecendo quando chegamos. Larissa sentia uma leve ardência em seu corpo. Hiago aparecera novamente.

  • Larissa, tenho umas laranjas lá em casa. Você quer ir para lá?
  • Sim, claro! Não estou me sentindo tão bem. Talvez um pouco de ar me deixe um pouco melhor.
  • O que você tem?
  • Acho que estou com um pouco de febre, mas vamos! Quer ir também, Álisson?
  • Ah! Tudo bem!

Dirigimo-nos para a casa de Hiago. Fomos até a varanda e nos sentamos no sobrado. O sobrado não tinha qualquer cerca, portanto era fácil alguém cair de lá e se esborrachar no chão a mais de cinco metros. Sentei-me no meio dos dois.

Hiago nos trouxera um pequeno balde cheio de laranja e duas facas. Cheguei a pensar que aquelas facas seriam úteis para que ele pudesse me assassinar, mas, ao olhar para baixo, percebi que aquela não seria a única forma.

Larissa não sabia descascar uma laranja, por isso fazíamos torcida para ver se ela conseguia tal ato. Entre uma ferida e outra na pobre fruta, ela nos contava:

  • Certa vez, falei para as meninas que não sabia descascar uma laranja. Brunna olhou para mim e disse bem assim: “Está na hora de você aprender”. Sempre tive vontade de responder coisas como: “É que não fico perdendo tempo com coisas inúteis como essa, fico tentando aprender coisas que eu vou precisar mesmo, como bioquímica”.

Rimos. Larissa não perdia o sensor de humor, mesmo no estado em que ela se encontrava. Sua febre estava cada vez mais alta e seu nariz já começava a escorrer.

  • Brunna é muito burra. Ela estava mal em bioquímica e eu me ofereci para ajudá-la, mesmo que não precisasse de nota. Então, Flaviana disse a ela que precisava muito estudar biofísica e ela preferiu ajudá-la. Aconteceu que Flaviana desistiu de estudar e Brunna não estudou nem uma e nem outra. Resultado: Se ferrou nas duas! Tenho vontade de dizer a ela: “Vai, trouxa! Quem mandou?”.
  • Um dia ela aprende! – comentou Hiago.
  • E mesmo assim você se compromete a ajudá-la? – perguntei-lhe.
  • É porque eu sou trouxa! – respondeu Larissa.

Eu estava terminando de descascar minha laranja. Como aquela era uma faca bem melhor que a outra, era a mais desejada. Por isso, Hiago me pediu de volta.

  • Pra quê? – perguntei-lhe.
  • Vou matar você! – ele respondeu, sem mudar seu semblante.
  • Você é muito burro, Hiago! É mais fácil você me jogar daqui de cima. Vou morrer e você ainda pode fazer parecer um acidente.
  • Olha! Sabe que é uma boa ideia? Você é bem inteligente! Quer que eu te empurre agora? – perguntou-me.
  • Não! Agora não! Deu muito trabalho descascar essa laranja, então me deixe terminá-la primeiro!
  • Tudo bem, mas não demore.

Parecia uma trégua entre nós dois. Talvez fosse o efeito da Laranja.

  • Você parece ser legal! – disse-me Hiago.
  • É! Só pareço! Não se engane muito com isso. – Respondi-lhe.
  • Larissa, você quer dormir aqui em casa hoje? – Hiago perguntou.
  • Pode ser. Só vou para casa tomar banho, vestir uma roupa, pegar minhas cobertas e travesseiros e subo para cá.
  • Combinado então!
  • Você vai dormir aqui também, Álisson? – Larissa me perguntou.
  • Ah… – resmunguei.
  • Se não quiser, não precisa. Você dorme lá com os cachorros. – continuou Larissa.
  • Pensando bem… Como você está se sentindo, Larissa?
  • Nada bem.
  • Quer que eu te ligue para ver se você melhora? – perguntou Hiago.

‘Ligar?’ – pensei.

  • Pode ser! – respondeu Larissa, rindo.

Então, Hiago pegou seu celular e começou a discar para o número. Uma música japonesa começou a tocar.

  • Alô? – disse Larissa atendendo.
  • Oi, Larissa! Aqui é o Hiago. Tudo bem?
  • Tudo bem e você? – Larissa continuou.
  • Tudo bem! Onde você está? – perguntou Hiago.
  • Ah, estou aqui numa sacada, de frente para a minha casa. E você?
  • Ah, estou aqui na sacada da minha casa, mas não estou vendo você. Acena.
  • Acenei. Você viu? – perguntou Larissa.
  • Não! Estou acenando de volta. Viu? – perguntou Hiago.
  • Também não!
  • Quer vir aqui?
  • Sim, claro! Vou desligar o telefone e já estarei aí em menos de cinco segundos. Até mais, beijos!
  • Beijos! Ah, oi Larissa! Demorou! – disse Hiago, após desligar seu telefone.
  • Esse trânsito está uma loucura, menino!
  • O que vocês estão fazendo aí?

Era Tchely. Surgira do portão de casa, olhou para nosso rumo e nos viu ali na sacada. Hiago aproximou-se mais da beirada da sacada e gritou:

  • Estamos chupando laranja!

Percebi que Hiago estava bem na ponta da sacada. Meu coração gelou. Tentei puxá-lo para trás, mas como o garoto estava muito pesado, não consegui.

  • Quer vir até aqui nos acompanhar? – perguntou Hiago.
  • Hiago! – continuei puxando – Você vai cair desse jeito!
  • Não, obrigada! – continuou Tchely.
  • Tchely, pegue minha câmera e tire uma foto nossa daqui de cima! – gritei.

Tchely entrou. Quando voltou, segurava uma câmera semiprofissional. Bateu três fotos nossas:

  • Cuidado aí em cima! – e voltou para casa.
  • Com o quê? – Hiago questionava, enquanto um homem caía do andar de cima.
  • Hiago, vou voltar. Não estou me sentindo muito bem. – disse Larissa, colocando a mão na testa.

Ajudamos Larissa a voltar para o apartamento e, de lá, fomos para casa. Hiago ainda demorou alguns minutos, pois tomaria um banho antes de descer. Em casa, Vívian cozinhou uma sopa para a garota.

  • Que mãezona você arrumou, hein? – comentei à Larissa.

Mas, isso não impediu que ela regurgitasse a laranja dentro do lixo.

  • Vomita mesmo, minha filha! Que isso vai te fazer bem!

Quando Hiago apareceu, foi direto ao quarto de Larissa e deitou em sua cama. Para implicar, deitei-me na mesma cama e o empurrei para o colchão, onde Larissa estava deitada. Ele logo foi tirando sarro:

  • Pelo menos agora estou do lado de Larissa, bobo.

Então, ele pegou o lixo e viu uma bela imagem.

  • Credo! O que é isso? – Perguntou incrédulo.
  • Ela vomitou! – respondi-lhe.

Para mostrar seu bom estado, Larissa colocou em seu mensageiro instantâneo a seguinte mensagem pessoal: ‘Nada melhor que ficar doente em véspera de Expomontes. Uhul!’. Hiago aproveitou a ocasião para responder a todos que perguntavam que ela estava grávida. E de mim. Tinha pena da pobre criança.

Distante, a campainha tocava. Uma, duas, três vezes. Vívian logo desconfiou:

  • Álisson, acho que alguém está tentando tocar nossa campainha. Vai lá ver para mim, por favor.

Fui lá pra fora. Um pouco distante, um garoto de boné sentava-se na calçada. Olhei fixo para ver se me lembrava dele. Assim que me viu, ele foi logo perguntando:

  • A casa de Larissa é aí?

Era Erick. Estivemos juntos noite passada, mas eu não me recordava de sua fisionomia. Para não parecer mal-educado, pedi-lhe que entrasse.

  • Larissa não está muito bem. Está deitada.
  • Larissa, o que você tem? – Erick foi logo perguntando ao vê-la deitada.
  • Febre, dor no corpo, vômito. Acho que é virose, “doença de médico”.
  • Deu algum remédio para ela tomar? – perguntou Erick.
  • Não temos nada aqui! Vou levá-la amanhã para a policlínica! – disse Vívian.
  • Ou a uma funerária. Tem tantas aqui! – disse-lhes.
  • É! Parece ser uma boa ideia! – disse Vívian, pensativa.
  • Vai para a aula amanhã? – Erick perguntou à Larissa. – Sabe que tem prova de Cris, né?
  • Acho que vou pedir a ela que me dê uma prova semana que vem, caso não melhore. Não estudei nada! – disse Larissa.
  • Larissa, João está online! Quer que eu peça a ele para fazer seu toolbox?
  • Quero.

“Claro que posso fazer pra ela, Vívian. Assim que terminar darei um pulinho aí e entrego!” – respondeu João, por mensageiro.

  • Enquanto isso, vocês não querem ir buscar uns pães para fazermos cachorro quente? O Álisson ainda não conhece meu cachorro quente democrático!

Topamos ir. Erick, Hiago e eu caminhávamos pela cidade, passávamos por passarelas e rotatórias. Mesmo que eu não tivesse andado muito por aquela cidade, o caminho percorrido era quase sempre o mesmo.

  • Na minha terrinha, dez horas da noite a cidade já está dormindo. Você não encontra ninguém na rua depois disso. E aqui?
  • Seis! – disse Erick, brincando.
  • Olha para essa passarela! Essa é a passarela de desfile de modas. O pessoal compra uma roupa, veste e passa por essa passarela a noite para ficar se exibindo. – disse Hiago.
  • E quando será nossa vez? – perguntei.

Após uma longa caminhada de quase cinco minutos, chegamos à padaria. Entramos e fomos todos educados:

  • Boa noite!
  • Boa noite!
  • Boa noite!
  • Boa noite! – respondeu a caixa.
  • Boa noite! – respondeu o dono da padaria.
  • Boa noite! O que vocês vão querer? – perguntou a padeira.
  • Cachorro quente a um real e cinquenta! – exclamei.
  • Quantos pães vamos pedir? – perguntou Hiago.
  • Vívian te deu quanto? Cinco reais? Compra tudo em pão! – brinquei.
  • Cinco reais de pão, por favor! – pediu Hiago.
  • Ele está de brincadeira, não está? – perguntei a Erick.
  • Homem! A mulher vai te fritar vivo se você gastar tudo em pão! – disse-lhe Erick.
  • Mata nada! Pode encher a sacola.
  • Ele é sempre assim? – perguntei a Erick, mas o garoto só riu. – Você é de onde?
  • Ouro Preto.
  • Sério? Tenho vontade de conhecer. Qualquer dia desses apareço na sua casa e você me mostra a cidade por completo.
  • Pode ir à vontade.
  • Caramba, aqui também tem maracujá nativo! – exclamei novamente.
  • Obrigado, senhora! Vamos embora, pessoal!

E lá fomos nós. Hiago carregava um saco lotado de pães.

  • Estou te falando que a mulher vai matar você!
  • Vai nada!

Seguimos para casa. No caminho, percebia que, dificilmente os carros eram de Salinas.

  • Olha! Esse carro é de Belo Horizonte! – exclamei.
  • Esse não é o carro daquele nosso professor? – Erick perguntou a Hiago.
  • Esse mesmo. – Hiago respondeu.
  • Ah, isso explica! Olha só, esse também é de Belo Horizonte! – continuei.
  • Esse também é de um professor nosso.
  • Ah! Você está de brincadeira comigo!

Era difícil de acreditar que os dois carros da capital eram de dois professores deles. Tão difícil quanto acreditar que, nesse momento, um cara descia rolando a tal passarela da moda.

Em casa, como previsto, Vívian queria matar Hiago por seu exagero. Para compensar, Erick assumiu o gasto por completo.

  • Aqui, Vívian! Pode deixar que o gasto fica por minha conta.
  • Não, Erick! Você é nosso convidado.
  • Sem problemas, mulher! Pode deixar que eu pago.

Enquanto Vívian aceitava o dinheiro de Erick, eu provava o tal cachorro quente democrático.

  • Como aqui Larissa, Hiago e Letícia são vegetarianos, temos que fazer essas comidas diferentes para poder agradar todo mundo. – explicou Vívian.

Era uma mistura de salsicha e soja, para agradar carnívoros e vegetarianos. Um gosto um tanto exótico, mas que valia a pena experimentar.

Já estava bem tarde e João ainda não havia aparecido. Ele havia se enrolado com o resumo da prova que estava fazendo.

“Como Larissa está?” – perguntava João.

“Em estado terminal!” – respondeu Vívian.

“Se ela morrer, eu a mato. Esse toolbox está me dando muito trabalho!” – continuou João.

  • Larissa, João disse para você não morrer agora, pois ele está fazendo seu resumo. – gritou Vívian.
  • Ok, então! Vou deixar para amanhã! – gritou Larissa.

“Vívian, tem algum problema se eu entregar uma xérox ao invés do original?” – perguntou João.

“Acho que não tem problema não. Cris é de boa, se ela não aceitar, vamos amarrá-la e tudo fica resolvido!”. – disse Vívian, que repetiu a conversa para Larissa escutar.

  • Amarrem-me com ela, por favor! – gritou Larissa.
  • Vamos te amarrar e te jogar num rio! – gritou Vívian.
  • Querem ajuda? – perguntei.

“Vívian, diga à Larissa que está muito tarde. Levarei os resumos amanhã, se ela não se importar. Enquanto isso, vou tentar terminar aqui. Até amanhã!”

E eles se despediram. Vívian contou o caso de João à Larissa, para que ela pudesse se tranquilizar.

Como estava tarde, Erick e Hiago se despediram de nós. Larissa preferiu não dormir na casa de Hiago por razões óbvias. Deixariam para outro dia. Respirei mais aliviado por não ter que aturá-lo por mais algumas horas, mesmo que ambos estivessem dormindo. Com isso, encerramos a noite. Amanhã seria um dia mais agitado.

Mas, o que havia acontecido com a gata xadrez do começo do capítulo? Finalmente encontrara seu caminho de casa, pegando carona com o mesmo motoqueiro. Para seus filhotes, levou um pedaço de pão amanhecido e tiveram um delicioso jantar.