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Autopsicografia – Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

Longe de mim, encontrei o amor

Só mais esse nó na gravata e tudo pronto. O reflexo do espelho agora mostra um novo homem, seguro, forte, feliz e apaixonado. O espelho me apresentava aquele cara tão bem arrumado, tão bem vestido e tão bem penteado.

O frio na barriga me faz companhia, desde que de minha terra parti. Tantos quilômetros rodados só para ver aqueles olhos que me encantaram. Olhos que se fecham quando sorri, que se abrem quando se espanta, que se abaixam quando está triste, que se enrugam quando está brava. Decifro cada sentimento apenas com seu olhar.

Alguns só me fazem criticar. “Tantas mulheres lindas por aqui e você procurando tão longe?”. Eles não entendem que meu coração está lá, que partiu e me deixou pra trás. O que me resta é ir atrás dele, certo? “Você está se arriscando demais, pode partir seu coração e sofrer uma grande desilusão”. Sim, eu sei, estou me arriscando demais, mas, dane-se! Dane-se tudo! Eu vim aqui pra me arriscar mesmo, pra me arriscar por ela!

Pego meu carro, coloco uma música romântica no som e vou cantando com meus pensamentos nela. “Eu quero ser teu sol / Eu quero ser teu ar / Sua respiração” é a nossa canção, aquela que toca em meu coração.

Estaciono próximo ao seu portão. A campainha toca. Aquele velho frio aumenta. “Como você está tão linda”, é o primeiro pensamento ao te encontrar. Seus cabelos encaracolados, aquele vestido comprido e aqueles olhos, ah! aqueles olhos claros que me fazem pirar.

Eu a abraço, sinto seu perfume. Por um instante, fecho meus olhos e aprecio aquele aroma delicioso. Seu toque me faz perder em pensamentos tão profundos que se parasse o tempo naquele instante eu não me importaria. E novamente me pego admirando seu lindo rosto, tão mais belo quanto imaginava ser.

Abro a porta do carro, seguro suas mãos e a espero entrar. Vamos a um restaurante para um romântico jantar. À luz de velas e um violão, me ponho a cantar: “A fonte desse amor veio do seu olhar / Direto pro coração”, ela me fez apaixonar.

E da música no violão se teve um fim, ao contrário do meu coração que continuava a soar:

“Meu carinho, meu ar, meu desejo,
Sei que é um pouco cedo,
Mas algo aqui dentro,
Por ti me faz suspirar.

De terras tão frias
Parti e vivi
Nas estradas por dias
Até poder te encontrar

E Não há palavras que expresse
O que sinto sem medo
Ditas em bom tom
A quem queira escutar.

Me Bate um anseio,
É difícil, mas supero
Esse medo pequeno
Pois algo me faz acreditar.

Que o nosso destino
Você, eu e o carinho
Pra sempre juntinhos
Sei que vamos estar”

Então, segurando uma rosa, o salão se põe em silêncio, todos, na expectativa me vêem ajoelhar, olhar em seus olhos, até que finalmente me ponho a dizer:
“Quer ser minha namorada?”

Música citada no conto:

Conto de inspiração para Daniela e Ariston.

If the World Didn’t Suck (We Would All Fall Off)

Quando eu tinha apenas dois anos,  meu pai, segurando-me em seus braços, olhou-me nos olhos e disse: “Você é capaz de dar seus próprios passos”. Pôs-me no chão e a cena seguinte consistia em um lento caminhar de uma pequena criança numa pequena sala. Quando eu cresci, segurando minha mão, ele me disse: “Não pare até encontrar seu próprio caminho”. Soltou-me e a próxima cena era de uma pequena criança, num corpo de um adulto, caminhando por uma grande sala conhecida como mundo.

E assim minhas primeiras pegadas faziam marcas por longos trilhos percorridos com uma grande interrogação pairada sobre minha cabeça. “Afinal, o que significavam suas doces palavras?”

Com minha mochila nas costas e pouca bagagem, viajei por histórias diversas. Fiz escolhas boas e más. Em algumas estradas, podia relaxar, descansar, tomar um pouco de sol e me banhar em águas claras, sentindo o frescor do vento da colina. Em outros, espinhos, subidas íngremes, buracos, cobras. Outros, não havia nada, simplesmente.

Algumas vezes me perdi. Curvas e bifurcações me confundiam e me intimidavam.Entretanto, fiz-me amadurecer e refletir a cada novo passo. Um pequeno tijolo chamado aprendizado que aos poucos iam levantando um grande castelo chamado sabedoria.

Durante minha jornada, sentava-me à sombra fresca de meus pensamentos e escrevia uma nova poesia. Novos forasteiros se ofereciam para caminhar ao meu lado. Outros, mais pretensiosos, guiavam-me por um caminho próprio. Era minha decisão segui-los ou não. Convenciam a mim sobre o que deveria ou não fazer. Aos poucos me moldavam.

Quando me apaixonei, o amor me levou a uma bela ilha e por um tempo pude apreciar uma nova paisagem. Pomares, represas, tigres e alpinistas, deram lugar a peixes, areia, palmeiras e água salgada. Um novo sabor a ser degustado.

Foi uma breve distração que, por algum tempo, me fez crer que ali se escrevia mais um final feliz. Não era verdade. Quando me dei conta, olhei para os lados e me vi solitário naquele paradisíaco lugar. Não deveria eu ter finalmente encontrado meu caminho?

Ao regressar, um novo impasse: alguns viajantes já não estavam mais ali e algumas de minhas poesias transformaram-se em pó logo soprados pelo vento. Aquela ‘pedra no meio do caminho’, me fizera tropeçar.

Então, pude perceber algo: minha história não terminaria assim. Caminhando por novas estradas, outros viajantes me encontravam e escreviam novas poesias em meu diário. Então, pela primeira vez, senti a liberdade tomar conta de mim. Eu mesmo era capaz de guiar outros tantos viajantes e escutar tão semelhantes histórias vividas.

Por tanto tempo, não percebi que aquele já era meu caminho. Não importava o quanto havia vivido, sempre outros trilhos surgiam e as más escolhas por vezes se repetiam, tais quais as boas, impedientes de desmotivação. Nestas, encontravam-se meu apoio.

Pare um pouco e me ouça com atenção. Se sua mente não tiver ciência de que estamos num ciclo em que apenas alguns personagens e meras características são capaz de sofrer suas generosas alterações, talvez você não compreenda que, enquanto aprendemos a dar nossos passos, já somos escritores de nossos livros, sem direito a apagadores ou borrachas. Somos o que somos para valer, não meros expectadores.

Por isso, é hora de fazer valer. Tenha os pés no chão. Tudo bem se a mente flutuar de vez em quando, é normal, mas lembre-se: você é o personagem principal. Não é hora de se caracterizar tal papel com tamanho afinco?

Ao finalmente retornar a meu lar, coloquei minha mochila sobre minha cama e a esvaziei, admirando cada item retirado. Encontrei poesias, canções, sonhos, odores, sabores, marcas, sujeira, lágrimas, sorrisos, olhares, lembranças, flores, roupas, brigas, amizades, amores, mistérios, verdades, mentiras, sins, nãos, talvez. Encontrei enredo. Encontrei desfecho.

Quando eu tinha apenas dois anos,  meu pai, segurando-me em seus braços, olhou-me nos olhos e disse: “Você é capaz de dar seus próprios passos”.

https://www.youtube.com/watch?v=J9ab1a0mtpg