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Meras crianças

O que pensar de jovens maiores de idade quando vemos uma foto como essa?

Fig. 1: Gangorra, amigos, crianças e pirulitos

É claro! Nem precisa dizer. Subindo numa gangorra dessas, com um pirulito na boca e cheio de crianças, você poderia mesmo imaginar que todos não tínhamos mais nada a fazer e que realmente somos crianças, estou certo?

Fig. 2: João e eu disputando quem tinha o maior peso

Pois bem. Nesse dia, fomos até o orfanato, chamado “Casa de Passagem”, onde muitas crianças realmente são órfãs e outras foram separados dos pais por algum motivo (geralmente judicial). Ir para um lugar desses faz com que nosso lado humano cresça, provando que sempre é bom levar alegria às pessoas, mesmo que sejam tão desconhecidas (já viu aquele ditado: “Fazer o bem sem olhar a quem.”?).

Com certeza, foi um grande dia. Ter me divertido com essa galera toda foi muito prazerosa. E nem venha me dizer que isso é “coisa pra criança”, afinal, quantas pessoas hoje deixamos de ajudar, de certa forma, para perdermos tempo com futilidades ou coisas do tipo. (Brincar com crianças é feio, mas falar mal dos outros, ah, isso é bonito, não é?).

E entre tantas brincadeiras, é bom sermos chamados de tios e ver que aquelas crianças realmente apreciavam todo aquele carinho. Não só bom para nós, como para elas, principalmente.

Fig. 3: Se a casa não se quebrar, estamos no lucro

Aproveito pra agradecer ao pessoal que me levou lá: Letícia, Larissa, João e Paulinha, já que nem sempre posso ter a oportunidade de fazer um programa como esse.

Às vezes podemos não ter oportunidade ou tempo, mas quando tivermos é sempre bom fazermos esse tipo de coisa. Assim, podemos ver que nossa vida também se baseia em ajudar quem mais precisa e não apenas de reclamarmos de nossos problemas ou de julgarmos aqueles que nem sequer faz parte de nossas vidas. Reflita sobre isso!

Um ótimo fim de semana a todos.

Mais ou Menos Salinas (4)

Capítulo 4: No centro da cidade

  • Ó linda Princesa! Finalmente te encontrei.
  • Ó, meu doce e honorável cavaleiro. Estou muito feliz que você tenha vindo me resgatar.
  • Ó linda Princesa. Você tem um lindo par de olhos caramelos.
  • Ó, meu doce e gentil cavaleiro. Chegue mais perto de meus lábios para receber o encantado beijo de uma donzela.
  • Ó linda Princesa. Parece que estou sentindo seus úmidos lábios por toda a minha face. E cada vez mais, e cada vez mais, e cada vez mais…
  • Champignon! Pare de lamber Álisson agora! Você quer pegar alguma doença infecciosa?

Novamente aquele despertador soava irritantemente às seis da manhã. Apesar de ter tido um belo sonho, fui despertado por um pequeno cachorro amarelo que lambia todo o meu rosto, naquela manhã. Mas, eu não queria sair de lá por nada.

  • Larissa, eu acordei?

Ao ouvir isso, Larissa me jogou um pesado travesseiro em meu rosto.

  • Tenho certeza de que agora sim!

Era um sinal de que Larissa já havia melhorado um pouco desde ontem. Ou, apenas buscou um pouco de energia para me jogar aquela almofada. No mesmo instante, Vívian aparecia no quarto, apenas enrolada na toalha:

  • Oi, meu bem. Você melhorou?
  • Ah, agora estou um pouco melhor. A almofada que Larissa me jogou é bem pesada.
  • Estou falando com Larissa, dá licença? Eu quero mais é que você se lasque! – resmungou Vívian.
  • Tenho um pouco de dor no corpo, a febre não abaixou completamente. – respondia Larissa, colocando a mão em sua testa.

Vívian adentrou aquele cômodo cor-de-rosa, mesmo sem qualquer veste por baixo daquela roupa de banho, colocou a mão na testa de Larissa, parou por um instante e lhe perguntou:

  • Vai para a aula?
  • Vou sim. Hoje tem prova e o nosso amiguinho sorridente João deve ter feito meu resumo. Não posso fazer uma desfeita dessas com ele.
  • E se ele não tiver feito o resumo? – perguntei.
  • Ele descobrirá qual a sensação de ser afogado numa privada. – Larissa respondeu, sem alterar o tom de sua voz.
  • Você está bem melhor, hein! – disse Vívian – Vou tomar um banho. A água do café já está no fogo. Por favor, fiquem de olho para mim.

Quando Vívian saiu do quarto para o banheiro, Larissa e eu fomos até a panela e a encaramos por bons minutos. Então, Vívian apareceu na cozinha, ainda de toalha:

  • O que vocês estão fazendo? – perguntou ela, incrédula à cena de dois bobocas quase queimando seus rostos na água fervente.
  • Foi você quem pediu – respondemos em uníssono.

Vívian, violentamente, nos tirou daquela panela e começou a mexer a água da panela com uma colher de chá.

  • Mexe que mexe, remexe mexe, que mexe, remexe mexe – eu cantava, batendo palmas, enquanto Vívian rebolava com uma das mãos na cintura e um sorriso no rosto.

Ding dong! A campainha tocava. Como uma boa visita, fui atender. Ao passar pela sala, Brunna saía de seu quarto, já uniformizada e com uns cadernos nas mãos.

  • Bom dia! – ela me cumprimentava com seu sotaque ligeiramente baiano.
  • Ai, para de me chamar de baiana. Que saco! – disse Brunna, ao narrador da história que, por acaso, sou eu.
  • Bom dia, Brunna! Vai só de calcinha pra faculdade hoje?

Brunna se assustou com o comentário feito e olhou para as pernas:

  • Engraçadinho!

Ela estava de calça sim, mas uma brincadeira pela manhã não faria mal a ninguém. E se ela tivesse trajada daquele jeito, eu não me importaria.

  • E Tchely? Onde está? Aaaah! – estava eu conversando com Brunna enquanto abria a porta, quando vi o rosto de Hiago e gritei assustado.
  • Bom dia, Assombração! – disse ele – Larissa está aí?
  • Não! Ela morreu! – Disse-lhe, fechando a porta em sua cara.
  • Ai, que menino grosso! – disse ele, enfurecido, abrindo a porta novamente e me empurrando contra a parede. – Qualquer dia desses, vou dar um murro bem nessa sua cara desproporcional para ver se ela fica melhor.
  • Vai dormir, Hiago! Ninguém te chamou aqui não! – disse-lhe, impaciente.
  • Os incomodados que se mudem. – Ele respondeu.
  • Eu não moro aqui, quer que eu me mude pra onde? – continuei.

Ainda impaciente, ele me empurrou novamente e dirigiu-se à cozinha. Fui logo atrás.

  • Bom dia Larissa, Vívian, Brunna! – Cumprimentou Hiago as três, que já estavam tomando café com bolachas amanhecidas que eram de Letícia.
  • Larissa, eu juro! Eu tentei segurar a manada, mas um elefante me jogou contra a parede e escapou de mim. – Comecei a falar antes mesmo de entrar na cozinha.
  • Vocês dois ainda estão brigando? – Vívian me perguntou, secamente.
  • É impossível não brigar com esse acéfalo. – Falei irritado.
  • Antes acéfalo que desnutrido. – Hiago retrucava.
  • Pelo menos eu não fico torrando a paciência dos outros. – Continuei.
  • Está torrando a minha! – Ele continuou.
  • Porque você torrou a minha primeiro! – Continuei.
  • Eles são sempre tão carinhosos assim com o outro? – Perguntou Brunna, sussurrando à Larissa, enquanto tomava mais um gole de seu café.
  • Não, nem sempre! Só quando se encontram. – disse Larissa, apreciando a cena.
  • Porque você não volta pra onde veio? – falou Hiago.
  • Impossível você voltar, já que Minas não tem mar! – continuei.
  • Eu vou pro bar! – cantarolou Vívian.
  • Cansei! Vamos parar vocês dois e vamos embora pra faculdade. Se quiserem continuar brigando, faça como toda pessoa normal e briguem no ônibus. E depois na sala de aula. Mas, temos que ir! – gritou Larissa.

Aquela gritaria havia cessado, mas as faíscas que saíam de nossos olhos, em direção ao outro, era perfeitamente nítida.

Saindo de casa, fomos até o ponto de ônibus. No ponto seguinte, apenas Letícia subiu. Todos estavam estranhando a ausência de João.

  • Pelo amor de Deus, me responda! Onde está nosso amigo de sorriso eterno? – perguntou Larissa, chacoalhando Letícia.
  • Ai, filha! Você está me machucando. Você está falando de João?
  • Não, estou falando de Antônio. Claro que é de João! Quem mais sorri o dia inteiro?
  • As duas olharam para o resto do ônibus e viram que todos estavam olhando para elas irritados.
  • Deu uma louca no João hoje e ele resolveu ir mais cedo. Disse que precisava entregar uma encomenda. Eu não entendi muito bem o que ele quis dizer com isso. – disse Letícia.
  • Eu espero que ele esteja com a minha, ou pagará muito caro! – disse Larissa.

Quando chegamos à faculdade, um garoto desconhecido gritava para todos que ali passavam:

  • Quem quer pó, quem quer pó? Bem baratinho! Na minha mão, um real o quilo. Moça bonita não paga, mas também não leva. Quem quer pó? Pó, madame?
  • Não, obrigada! – disse uma grã-fina que passava por ali com seu poodle, apenas para fazer essa fala na história.
  • Cola pra prova, cola pra prova, apenas cem reais! – gritava João do outro lado.
  • Eu quero, eu quero! – dizia o pessoal, enquanto pegava a cola das mãos de João e entregavam uma nota azul com uma imagem de garoupa estampa em um dos lados.

Após a dispersão, Larissa, Vívian, Brunna, Hiago, Letícia e eu o ladeamos e continuávamos a caminhar em direção à sala.

  • Um para cada um. Não reparem que é uma xérox – disse João, enquanto entregava uma folha para cada um.
  • A professora vai aceitar isso? – perguntou Vívian.
  • Ai, filho! Você deveria ter feito à caneta para todo mundo. Cris não vai aceitar essa coisa! – Resmungou Letícia, enquanto eu tentava virar a folha por todos os lados para tentar entender o que ali estava escrito.
  • Gente, gente! João teve muito trabalho ontem a noite, fazendo um para nós todos, inclusive para o burro do Álisson que não está sabendo nem de que lado é a folha. Dá aqui, energúmeno!

E Larissa virou a folha de cabeça certa para mim.

  • Então, temos que parar de criticar João e agradecê-lo pelo enorme esforço que ele nos fez! – continuou Larissa.
  • Obrigado! – respondeu João com um sorriso, esperando um abraço coletivo.
  • Se a professora não aceitar, matamos João. Simples assim. – terminou Larissa, sendo aplaudida por todos, exceto por João e, por mim, que ainda me concentrava naquela folha cheia de informações malucas.
  • Quero isso não, João. Tudo que eu preciso para a prova já tenho guardado na cabeça. – disse-lhe, entregando a folha. Esnobe, não?
  • Eu que tanto trabalho tive para xerocar essa mer… – disse João, rasgando a folha em mil pedacinhos. E, dessa vez, ele não estava sorrindo.

Continuamos a andar pela sala. Dessa vez, todos fariam provas na sala da agronomia. Como era um costume estranho daquele instituto, ao passarem por um caminho de terra e chegarem ao saguão de acesso às salas, uma turma de professores entregou-lhes uma bota de couro para que eles pudessem calçar. Enquanto calçavam, ficando na mesmo posição em que Napoleão perdeu a guerra, alguns funcionários do instituto passavam e metiam-lhes fortes tapas em suas bundas. Larissa e João chegaram a cair no chão, Hiago deu dois socos na cara de um zelador e Vívian deu um de seus gritos, seguidos de gemido:

  • Ai, delícia, volta aqui, volta! – dizia ela, enquanto o secretário geral saía correndo pelo mato, arrependido do que fizera.

Na porta, duas alunas, de 25 anos e que ainda estavam no colegial, tentavam atrapalhar a entrada de todos:

  • Primeiro ano? Naquela sala onde está aquela professora super gata! – dizia a primeira.
  • Consegue ver aquele professor ali só de sunga? – dizia a segunda, que olhava o professor mordendo os lábios.
  • Garota, o professor está completamente vestido! – dizia o aluno que tentava passar pelas meninas.
  • É porque ele ainda não me viu. – continuava a garota a admirá-lo.

Enquanto meus estimados amigos tentavam colocar a segunda bota, e recebiam mais tapas, eu analisava a relação de alunos matriculados e suas respectivas salas de prova. Estava me lembrando daqueles tempos de ensino médio, em que todos eram sorteados em uma sala em épocas de semestrais. Para dar uma melhor imagem, passei o dedo por toda aquela folha, como se tentasse encontrar meu nome escrito ali:

  • Ei, garoto. Pare com isso. Você está tirando toda a tinta do papel. – uma professora me chamara a atenção.

Realmente, por onde eu passei o dedo, a folha estava em branco. No meu dedo, as letras que eu havia tirado do papel.

  • Álisson, já vamos fazer a prova! – disse-me Larissa.

Então, todos nos dirigimos para a sala de aula, em fila indiana. Letícia comandava o grupo, seguido de Vívian, Hiago, João, Brunna, Tchely (que, novamente, não sabemos como foi parar ali), Catarina, Larissa e eu. Todos foram entrando um a um para onde Cris os aguardava. Quando eu ia entrando, Cris bateu a porta em minha cara, deixando-me de fora.

  • Muito bem, crianças! Espero que tenham feito todos os trabalhos que eu pedi. Também devo dizer que hoje, somente hoje, vocês poderão utilizar o text box. Agora, vamos às regras da prova. Por favor, olhem para o quadro.

Todos olhavam atentamente as três regras básicas que estavam no quadro.

  • Regra número um: Não pode falar, gritar, bocejar, dançar, pintar um quadro ou desenhar uma caveira na prova e indicar que sou eu.
  • Uma vaca pode, não pode? – sussurrava uma das garotas para a outra que concordava.
  • Regra número dois: Não pode desrespeitar a regra número um.

Todos presentes bateram suas mãos na testa.

  • E regra número três: quem for pego colando, terá o cabelo colado.
  • Ohh! – todos gritavam em uníssono.
  • Muito bem, quando eu contar até três, vocês podem começar. Quem tiver alguma dúvida, levante a mão que eu irei até a carteira de vocês. Vamos lá: um, dois…
  • Professora! – disse Arthur, levantando a mão.

Então, Cris foi do início da sala até o fundo, onde Arthur estava.

  • Pois não, meu jovem? – disse ela arregalando os olhos e tirando de seu rosto seus óculos invisíveis.
  • Então, podemos começar a fazer a prova? – perguntou Arthur, encarando-a.
  • É claro que sim, meu jovem. – continuou a professora.
  • Runf! – Resmungou Arthur.
  • Algum problema? – perguntou a professora.
  • Eu adoraria começar a fazer a prova, mas uma coisa me impede. – continuou Arthur, ainda mais desanimado.
  • Não quero desculpas! Pode fazer sua prova – disse a professora irritada.
  • Mas, professora… – tentou argumentar Arthur.
  • O que foi? – perguntou a professora o encarando mais de perto.
  • Você não nos entregou a prova. – respondeu Arthur.

Por uns instantes, a sala fizera silêncio. Ela o olhou por alguns segundos, levantou seu corpo, recolocou seus óculos invisíveis e por alguns instantes ficou ali parado, observando o garoto do cristalino. Então, Cris virou-se e foi até a mesa, pegou as provas e…

  • Quem quer fazer provas? – disse ela animada, enquanto jogava as provas para o alto.

Todos se levantaram alvoroçados e foram pegar as provas que caíam no chão, gritando. Tchely, Letícia e Catarina chegaram a disputar no tapa uma das folhas, mesmo sabendo que na mesa da professora ainda havia várias, intactas.

Já sentados, organizados, e com suas folhas amassadas de prova na mesa, os alunos começavam a pensar e rabiscar o que sabiam.

Cris andava por toda a sala para ver o que cada um de seus pupilos faziam e para evitar quaisquer tentativas de cola. Alguns não conseguiam evitar, como Davi, que estava com a cola na mão. E depois, a cola estava na boca.

  • Menino, para com isso! Vai grudar sua língua! – dizia a professora, tirando a cola da boca do garoto.

A professora continuou andando, rumo a sua mesa. João aproveitou o momento e sussurrou para Vívian, que se sentava à sua frente:

  • Vívian, a resposta da dois, qual é?

Vívian ainda não havia chegado nessa questão. Estava empacada na primeira questão que era de V ou F. Mas, para ajudar seu grande pequeno amigo, ela resolveu pular de questão. A questão era: “Se você comer muito açúcar, corre o risco de ter…”.

Ninguém na sala tinha certeza da resposta correta. Muitos pensavam que era algo como “dor de barriga”. Apenas Vívian sabia a resposta correta. Por isso, ela resolveu ajudar.

  • João, João. Psst!

Então Vívian começou a se apontar. João não estava conseguindo entender. Desconfiada de ter ouvido algum barulho, Cris olhou por toda a sala vistoriando. Vívian aquietou-se rapidamente.

  • Vívian! Qual é a resposta da dois? – Insistiu João ao ver que Cris se virava.

Vívian continuou se apontando. João não conseguia entender. Mas, todo aquele movimento começava a despertar o interesse na sala, pouco a pouco. Algumas pessoas perguntavam a João, apenas mexendo os lábios:

  • O que ela está fazendo?
  • Ela está me dando a resposta da número dois! – Respondia João, sem emitir som.

A professora continuava de costas. Vívian levantou-se da cadeira e começava a se apontar, olhando para João. Neste momento, a sala inteira já estava prestando atenção na nossa amiga. Vívian percebendo que estava sendo atração, indicou o número dois nos dedos e começava a se apontar. Todo mundo entendia que ela estava passando cola, mas não entendia o que ela estava querendo dizer se apontando daquele jeito.

Vívian, impaciente, arrastou todas as cadeiras do meio da sala para algum lugar e começou a dançar ali mesmo. Batia palmas e rebolava, remexia o corpo, arriscava uma dança do ventre e até pôs uma espada na cabeça. Depois, começou a dançar funk dançando até o chão.

  • AH! – Gritava João Pedro.
  • O que foi? – perguntou Camila, que se sentava em sua frente.
  • Pense bem. Os movimentos, Vívian… A resposta é sexo! – sussurrou o garoto.

Camila ficou muito feliz com a resposta e escreveu na prova. Alguns ainda não haviam entendido. Então, Vívian pendurou-se num candelabro que tinha no meio da sala (a escola toda ainda possuía uma decoração de tempos antigos) e começou a dançar sobre ele. Então, todos iluminaram suas cabeças e escreveram sexo como resposta, com exceção de Letícia, que escrevera loucura, João, que ainda não havia entendido nada e Larissa, que aproveitava o momento para vomitar.

Vívian pulou do candelabro. O barulho que seus pés fizeram ao tocar o chão chamou a atenção de Cris que se virou repentinamente. Ela via apenas uma sala comportada, fazendo sua prova. Vendo que não era nada de mais, Cris resolveu ignorar o barulho. Vívian conseguiu se sentar bem a tempo em sua carteira, assim como todos os alunos arrastados pela garota conseguiram colocar a tempo suas cadeiras de volta ao lugar. Questão de milésimos de segundos. Foi aí, que…

  • Atchim!
  • Quem foi? – disse a professora virando-se.

Quando Cris se virou, o candelabro se despencou na cabeça Ítallo, que tentava se concentrar em sua prova, quieto.

  • Você está bem? – perguntou Cris, preocupada, após retirar o candelabro de mais de 30 quilos da cabeça do garoto desacordado.
  • Diabetes, João! – sussurrou Vívian, aproveitando o momento de distração.

João ainda ficou um tempo tentando entender o que Vívian dissera. Enquanto aquilo matutava sua cabeça, ele tentava fazer outras questões.

Por outro lado, Larissa continuava não muito bem. Tentava responder primeiro as perguntas de alternativas para se livrar de um grande peso.

Nesse momento, Cris ligava de seu celular para a diretoria da escola:

  • Por favor, peçam para o pessoal da enfermaria dar um pulinho na ala da agronomia, setor B, sala 3, número 418, rua do matagal. Venha depressa que o garoto está morrendo!
  • Estamos a caminho. – respondeu a voz do outro lado.

Cris desligara. Enquanto esperava, ela passava pelas mesas para verificar os textboxes dos alunos, certificando-se de que não havia problema com nenhum deles.

  • O que a senhora está fazendo, professora? – perguntava João Marcos.
  • Primeiro, que senhora é sua mãe. Segundo, vendo se tem alguma pessoa que tirou xerox do textbox, não é, senhorita Larissa?

Larissa apresentou um sorriso amarelo.

  • Posso saber o motivo disso, dona Larissa?
  • Primeiro que dona Larissa é sua mãe… – começou Larissa.
  • Como é que é, mocinha? – perguntou Cris, com um tom de raiva.
  • Err.. quer dizer… é que eu estava doente, então João me ajudou.
  • Então, você estava doente? – perguntou a professora, enquanto continuava a analisar a folha de resumos.
  • Sim! – respondeu Larissa.
  • Que bom! – disse a professora na maior naturalidade.
  • Que bom? – perguntou Larissa, enquanto o resto da turma caía na risada.
  • Ops! Quer dizer. Que bom que você está aqui na sala, melhor, fazendo a prova. – disse a professora, sem graça, enquanto a turma continuava a rir.
  • Meu pai do céu! – exclamou João alto pela sala.

Cris devolveu a folha à garota, que lhe perguntou:

  • Professora. Sei que não vou me dar bem nessa prova, pois estou muito mal. Não estou conseguindo raciocinar direito. Quero saber se posso fazer a prova de recuperação semana que vem, já que amanhã viajaremos para Montes Claros.
  • Ah! Você não quer fazer provas porque vai viajar. Bonito, não?
  • Não tanto quanto as pernas de Paula Fernandes, professora. – gritava uma voz no fundo da sala.

Então, Cris parou para olhar suas pernas descobertas.

  • Tudo bem. Ouçam todos! Quem for fazer a prova de recuperação, pode vir semana que vem. Amanhã estarei por aí, em qualquer matinho, para entregar a nota de vocês.
  • Hmm.. Matinho! – zoavam alguns alunos.
  • Quero dizer, em algum lugar no instituto. – A professora tentava consertar, envergonhadíssima.
  • Você entendeu o motivo de ela ter falado matinho de primeira? – sussurrou Hiago para Letícia.
  • Olha, acredito que ela esteja querendo fazer um sexo bem selvagem com o primeiro aluno que ela encontrar. – disse Vívian, intrometendo-se na conversa.
  • Era minha vez de responder, sua tapada! Eu quase não apareço nessa maldita história e você ainda rouba minhas participações? – esbravejava Letícia para a garota.

Subitamente, o chão da sala se abriu, bem no rumo de Letícia, que caía num lugar profundo, sem destino, desconhecido. Enquanto ela caía, dava um grito bem alto, ouvido por todos, mas ignorado. Não me perguntem o porquê de isso ter acontecido. Também não me perguntem quem teve essa brilhante ideia de fazer isso. Eu só sei que foi assim (assovia).

Quando o chão se lacrou, todos voltaram a fazer suas provas. Todos, exceto Larissa, que, como não se sentia nada bem, resolveu entregar a prova com algumas questões em branco. Quando analisou novamente, percebeu que apenas quatro questões estavam em branco. De seis! Que progresso!

  • Aqui, professora. Não estou me sentindo muito bem.
  • Ah, mas você respondeu quase todas, muito bem! – elogiava a professora.
  • Não, professora, eu deixei… – tentou dizer Larissa.
  • Não, menina, não seja boba! – dizia a professora, enquanto começava a completar as respostas que estavam em branco. – Você respondeu todas e muito bem! Aposto que você nem vai tirar uma nota tão ruim assim. – Ela continuava a falar, enquanto apagava uma das respostas de Larissa, que havia marcado A, sendo a resposta correta a letra E, marcada pela professora.

Enquanto Larissa tentava sair da sala honestamente, eu estava dando outras voltas pelo instituto. Passei por caminhos que, no dia anterior, ainda não havia passado. Tudo porque aquelas garotas não paravam de encher o saco. Não o meu, mas de todos que passavam.

  • Nossa, você viu aquela bota horrorosa daquela menina que estava ali?
  • Menino! O que aconteceu com o seu cabelo? Parece que foi eletrocutado!
  • Olha aquela vaca! Com aquele sorrisinho, sei muito bem dizer o que ela estava fazendo ontem a noite.

Em minha trajetória, encontrei um celular preto, antigo, no chão. Até hoje, o pessoal briga comigo por eu não ter pego e devolvido, mas vou contar a verdadeira história do que aconteceu naquele dia. Nada de mentiras. Agora vocês entenderão o que realmente aconteceu. Confiram.

Estava eu caminhando pelo instituto com uma metralhadora na mão. Como havia feito alguns amigos, enquanto caminhava, resolvemos brincar de Counter Strike de verdade naquela escola. Espalhamos algumas armas pelo caminho e montamos dois times de três pessoas. Então, a disputa foi sangrenta. Tiro para todos os lados. Quando restava apenas eu do meu time e outro do time adversário, resolvi procurá-lo nos terrenos mais baixos da faculdade. Foi aí que eu encontrei aquele celular.

  • Oh! Como brilha! – eu dizia, fascinado.

Aquele celular mudaria minha vida. Finalmente poderia conversar com qualquer pessoa do mundo que a conta jamais seria paga por mim. Era muita felicidade!

De repente, o celular tocou. Era um número desconhecido para o dono daquele aparelho. Meu coração tremia. Tudo em volta ficava escuro. Eu estava gelado. Então, o adversário apontou sua arma pra mim e gritou:

  • Chegou seu fim!
  • Agora não, imbecil! Estou tentando fazer uma cena dramática!

Arranquei-lhe a arma de suas mãos e a enfiei em seu…

  • Crianças, depressa! – gritava uma professora logo ali – Ou vocês perderão a revisão para a prova de amanhã.

Enquanto as crianças ao meu lado corriam, o celular não parava de tocar. Abri-o e coloquei em meu ouvido. Foi quando, uma voz assustadora disse:

  • Sete dias! – era uma voz feminina, mas assombrosa.
  • Não está. Quer deixar recado?
  • Recado? Estou dizendo que você só tem sete dias!
  • Sete dias pra quê, moça?
  • Pra morrer! – dizia ela, rindo maleficamente.
  • Sei, mas eu ou o dono do celular, porque ele não está neste momento.
  • Não quero saber! São sete dias e ponto final.
  • Você já disse isso, não sabe dizer outra coisa não?
  • Você irá morrer! E eu voltarei para buscar sua alma.
  • Olha só, eu não sei quem é você e outra… Ah! Só um minuto, meu celular está tocando. Alô, Larissa? Oi, você já terminou sua prova?
  • Sim, onde você está?
  • Estou perto. Já chego. Beijos!

Voltei ao outro telefone.

  • Eu preciso desligar minha amiga está me esperando. Beijos gatinha, se cuida!
  • Espere…

Ao perceber o que eu havia feito, coloquei o celular de voltar ao lugar e saí correndo. Como se isso fosse adiantar alguma coisa. Agora vocês conseguem entender perfeitamente minha situação, não é mesmo? Hein? Respondam!

Voltei até a ala da agronomia, e lá estava Larissa. Contei-lhe tudo o que havia feito e ela me contou o que havia acontecido em sala.

Continuamos andando em direção ao pátio. Alguns colegas continuavam a caminhar conosco após fazerem as provas. Flaviana, quando viu Larissa e após cumprimentá-la, foi logo informando:

  • Agora é oficial. Amanhã sairá um ônibus daqui do instituto que nos levará para Montes Claros. Voltaremos sábado à noite. Três professores nossos irão.
  • Quando ele sairá?
  • Onze horas da manhã. Não se atrase, ou você irá se perder!
  • Obrigada! – agradeceu Larissa, enquanto Flaviana corria.

Então, paramos. De longe, Vívian aparecia com seu cigarro na mão, ao lado de João, sorridente.

  • Pelo sorriso, foi muito bem na prova. – Perguntei.
  • Não, com certeza peguei recuperação na prova de hoje também. – E continuou ele lá sorrindo.
  • Vívian, qual a graça que você vê em fumar? – perguntei.
  • Eu não fumo pra rir! – disse ela, enquanto me baforava na cara.
  • Eu sim!

Tentei tirar o cigarro de suas mãos para fazer uma demonstração, mas logo fui recebido com um tapa na mão, deixando-o cair.

  • Galera, o ônibus sairá amanhã. – Larissa anunciou.
  • Eu não vou poder ir nesse ônibus. Como vamos fazer para nos encontrarmos? Ficarei perdido naquela cidade! – resmunguei.
  • Larissa, precisamos ver isso. Talvez se falarmos com o professor Gabriel, conseguimos uma brecha no ônibus para ele. – disse Vívian.
  • Ou, ele também pode amarrar uma corda na rabeira do ônibus e ir de skate. – sugeriu João.
  • Vou pegar o lugar de João. Com nosso tamanho ninguém vai notar a diferença. Basta pegar apenas um pouco de sol. – disse, ironicamente.
  • E eu vou de quê? – perguntou João, confuso.
  • De bicicleta! – peguei uma torta de espuma que estava ali no chão, misteriosamente, e acertei em sua cara, derrubando-o na lama logo em seguida.
  • Seu monstro! – disse Letícia, de longe, ao ver a cena, derrubando-me logo em seguida. – Joãozinho, você está bem? – Letícia estava chorosa.

João tentava recuperar seu ar, ainda sorrindo:

  • Sim! Estou muito bem. Obrigado.
  • Então, trate de ficar mal pra cena ficar mais dramática! – disse Letícia raivosa, voltando a jogar João na lama.

Levantei-me da lama, neste momento.

  • Letícia, o que você está fazendo? Não sabe que essa é uma camiseta de grife?

Todos olharam para mim céticos.

  • Quanto custou essa camisa, filho? – perguntou-me Letícia.
  • R$ 9,99! – Respondi com um sorriso amarelo.
  • Vamos embora daqui. – Sugeriu Letícia.

Esse era o grupo: as meninas (Letícia, Larissa e Vívian) conversando lá na frente, enquanto eu e João, lamacentos, tentávamos tirar o excesso que nos cobria. Repito o que disse: Tentávamos.

Mas, quando passamos pelo pátio, algo triste aos olhos de Larissa chamou-lhe a atenção. Na parede, vários cartazes estavam fixados sobre o tema “homossexualidade”. Muitos deles, contra.

  • Veja só isso: “A homossexualidade vai contra as leis de Deus!”. E essa outra: “A religião jamais permitiria a união entre duas pessoas do mesmo sexo. Isso quer dizer que um bom fiel cristão jamais deveria se permitir a tamanha heresia.”. Que absurdo! – Era o que Larissa exclamava.
  • E o que você pretende fazer? – perguntou João.
  • Eu poderia muito bem arrancar esses cartazes daqui. Não é uma coisa legal um instituto federal, como esse, pregar a homofobia!
  • Na verdade, o que eles pregaram foram cartazes. – disse Camila, que havia acabado de entrar na conversa.
  • Não, eu não falei isso! – disse Larissa que, ao ver que Camila estava rindo, fechou a cara.

Ignorando aqueles cartazes, lá foi a turma dirigir-se para o mesmo lugar que todos os universitários (ou sei lá como eles atribuem esse nome para alunos de institutos federais) se reúnem nos intervalos: naquele lugar pequeno, que não tem nem cadeira para se sentarem, mas que tem um pequeno buraco que dá acesso à moça que vende salgados congelados.

Quando chegamos, Vívian pegou um de seus cigarros da carteira, colocou na boca e o acendeu. Catarina foi até mim, e apontou para uma das manchas de minha camiseta:

  • O que é isso?

Olhei para baixo, e ela fez um movimento de sobe e desce com a mão no meu rosto, como aquelas brincadeiras de criança.

  • Fui tapeado! – Falei alto para alguém sentir pena de mim.

A turma da veterinária começou a se reunir mais uma vez. Para não ter qualquer problema, Arthur não se esqueceu de seu cristalino, dessa vez.

Eles estavam empolgadíssimos mais uma vez sobre o evento de exposições que estava acontecendo em Montes Claros, denominado Expomontes. A turma atualizava-se com outras informações, como as palestras que teríamos no primeiro dia, como se reuniriam para o show de Paula Fernandes e quais os pontos de parada antes de irmos embora.

Cada vez mais, eu ficava aflito. O combinado era Larissa e eu irmos de ônibus, mas tudo ali já parecia mudar. Como eu não era nenhum aluno de veterinária, era mais que correto que eu não fosse com eles no mesmo ônibus. Entretanto, Vívian estava disposta a me ajudar, mas nada ainda estava certo.

Um pouco afastados do grupo, Larissa, João, Letícia e eu nos aproximamos do lanchinho, como no dia anterior. João, mais uma vez, pediu seu salgado de frango congelado. Larissa preferiu não pedir nada, mas, para seu azar, a vendedora reconheceu seu rosto logo de cara:

  • É você? – perguntou ela com uma entonação de assustada.

Larissa, que ainda estava de costas, tirou os óculos e virou-se, completamente vesga:

  • Perdão, o que disse?
  • Não adianta disfarçar! – e a vendedora enfiou um dedo gorduroso em seu olho, fazendo-os voltar ao normal. – eu queria te pegar ontem, mas, por culpa desse magricelo…

Ela olhou para mim e para João, tentando apontar para um culpado, mas não conseguia estabelecer nenhum.

  • Qual dos dois magricelos me empurrou ontem? – perguntou ela, confusa.
  • Foi ele! – apontávamos um para o outro, simultaneamente.
  • Bem, não me importa. Pois, vou é acabar com a raça dessa branquela nanica.
  • Não me chame de nanica! – Larissa, furiosa, tirou seu salto alto de bico fino e o atirou contra a mulher. Novamente, saímos correndo. A mulher, furiosa, tentou escapar novamente pelo mesmo buraco, mas foi impedido por Vívian, que a empurrou de volta, repetindo o trágico episódio do dia anterior. Vívian também foi correndo.
  • Esperem! – Larissa gritou, fazendo João e eu pararmos. Vívian nos alcançou. Sentamos em frente à biblioteca do instituto, quando Larissa continou: – Alguém viu Letícia?

Alguns minutos depois, lá estava ela, gritando euforicamente:

  • Larissa, olha só o que eu fiz!

Letícia aparecia sorridente, com um pedaço de cartolina amassado na mão e mostrou à garota.

  • Ah! Não acredito! – gritou Larissa, exaltando de felicidade. – Você tirou esses cartazes homofóbicos da parede. Obrigada!

Larissa levantou-se e a abraçou fortemente, logo sendo correspondida. Os olhos de ambas brilhavam.

  • Para comemorar isso, teremos uma cena homossexual em nosso livro? – perguntei aos outros que viam a cena das duas garotas abraçadas.

Pulando para a cena seguinte e deixando o leitor curioso sobre o que acontecera, encontramos Hiago vindo ao nosso encontro. Como Larissa ainda não estava recuperada completamente, resolvemos ir embora para ir à Policlínica.

  • Você não está doente, Larissa. Fica aí fazendo charminho para termos pena de você. – Vívian disse, soltando a última remessa que o cigarro lhe proporcionara no rosto de Larissa.

Subimos no ônibus. A professora do dia anterior, novamente, saía correndo de sua sala para tentar alcançar o ônibus. Como a cena foi a mesma do dia anterior, vamos ignorá-la para não termos que pagar um cachê maior (já que o salário dos atores aqui mencionados já geram alta despesa para mim, o escritor).

No ônibus, Vívian e Hiago sentavam-se na primeira fileira, Larissa e eu na fila imediatamente posterior. Hiago e eu ainda não havíamos acertado todas as contas, portanto o clima continuava carregado.

  • Não sei o porquê de você estar aqui. Deveria ter ficado no instituto para ver se não toma nenhuma bomba. – Impliquei.
  • Eu sei que você sentiu minha falta! – provocou Hiago.
  • Claro que senti. Eu sempre me inspiro em você! – continuei.
  • Sério? – ele perguntou.
  • Claro! Eu sempre penso: “Se não me cuidar, ficarei como ele”.
  • Imbecil! Idiota! Insuportável! – ele me xingou.
  • Engoliu o dicionário, hein? – disse.

Eu sabia que, depois daquilo, o diálogo morreria. Aproveitei o momento de hiato para tirar algumas fotos no ônibus com Larissa, mesmo doente. Vívian virou-se para trás e colocou a mão em sua testa.

  • Você não está tão mal assim.
  • Coloca a mão na minha testa também, Vívian? – pedi-lhe.
  • Eu quero mais é que você se lasque! – ela me olhou com cara de desprezo e voltou ao seu lugar. Ouvi uma risada por parte de Hiago.

Já estávamos entrando na cidade. Para quebrar aquele gelo, comecei a cutucar o braço de Hiago.

  • Hiago! – continuei cutucando, ao perceber que ele me ignorava.
  • Ai, o que é que é? – perguntou-me irritado.
  • O que você vai fazer agora? – perguntei-lhe.
  • Nada, por quê? – ele continuou.
  • Quero conhecer muito a cidade, mas Larissa está doente. Poderíamos dar uma volta por aí, o que você acha? – perguntei-lhe.

Hiago pensou bastante. Ele não queria atender àquele pedido de forma alguma, não tinha motivos para isso. Mas, como ele gostava muito de Larissa, estando esta doente, ele resolveu aceitar esse encosto.

  • Tudo bem! Só vou para casa tomar banho, trocar de roupa, passar protetor, alimentar Lanna e já passo na casa de Larissa.
  • É! Já vi que hoje eu não saio de casa. – exclamei.

O ônibus parara. Apeamos e rumamos para a Policlínica Salinense. Após passarmos por um imenso jardim e descermos uma rampa, entramos em um lugar que parecia ser a primeira sala de espera, minúscula por sinal. Na fila, quatro pessoas. Uma delas, uma idosa a ponto de morrer.

  • Número 214. – gritava a balconista.
  • Vou pegar um número, me esperem! – disse Vívian.

Sentamos os três naquele banco desconfortável com o encosto gelado da parede. Enquanto Vívian esperava uma das atendentes verificar qual era o último número que ela havia escrito, Larissa dirigia-se ao banheiro, unitário.

Eu já vira hospitais pequenos, mas não como aquele. Sentia-me quinze anos mais jovem, quando ainda morava numa pequena cidade com pouco mais de 10 mil habitantes.

Já desistindo de procurar, a atendente resolveu escrever o número 246 para Vívian, que foi se sentar ao lado da velha em estado terminal. E lá foi ela, tirar mais um de seus cigarros da carteira para fumar. Larissa (que já havia voltado), olhou irritada para Vívian, apontando para a idosa. Vívian olhou para o lado, quando viu a velhinha:

  • Oi, dona Carmélia! Como você está? Que saudades da senhora! Vejo que a história está muito bem. Parece estar bem mais jovem.

Entre algumas tossidas e escarros, a senhora dizia, lentamente, mostrando um olhar seco e triste:

  • Eu… estou… me… sentindo… muito… cof, cof!
  • Ah, parece que algo não está lhe fazendo bem. A senhora parou de fumar? Eu disse a você que aquilo era um veneno.
  • Número 213! – gritava a balconista. Parecia que a única função dela era essa.
  • Uai, retrocedeu? – perguntei.

A jovenzinha parecia irritada quando se dirigiu ao caixa.

  • Desculpe, moça! – disse a balconista, tentando consertar o erro – eu acho que pulei um número.

E lá foi a moça, desaparecer pelo corredor.

  • Ah! Olha Larissa, que gracinha! Ela dormiu.

Larissa, ao ver o estado da velha senhora, que aparentemente dormia, arregalou os olhos e foi logo conversar com a atendente:

  • Por favor, senhora. Deixe-me passar na frente.
  • Não! – disse ela secamente.
  • Por fav… Ah! O que aconteceu com você, menina? Parece mais magra desde a última vez que te vi.
  • Ah! Que isso! É que agora estou tomando um novo produto que minha médica passou. É uma formosura! Se quiser eu passo pra você. Cá entre nós… – agora ela sussurrava – Você realmente está precisando!
  • Ah, obrigada! Você é muito gentil! Então? Para onde eu vou mesmo?
  • Naquela sala! Tenha um bom dia!

Conseguindo passar a perna, lá fomos os quatro para o fim daquele corredor. Entramos numa porta. E… Adivinhem: entramos na segunda sala de espera. Dessa vez, com mais de vinte pacientes.

  • Tudo bem. Os homens eu dou um jeito – disse Vívian sussurrando para o nosso lado e, depois, alterando o tom de voz, chamando a atenção de todos que estavam presentes – Quem quer fazer sexo comigo? – dizia ela, abrindo os braços.

Foi um tiro no pé. Ao invés de homens correrem atrás dela, um monte de mulheres fez o papel. Não para o que vocês imaginaram, mas para bater nela mesmo, já que todas elas eram as esposas dos homens que se encontravam por lá. Vívian fugiu.

Alguns minutos depois, Larissa foi chamada. Ficando na sala, além dos pacientes figurantes da história, é claro, apenas Hiago e eu. Entretanto, apesar de esperarem que mais uma briga ocorresse, um longo silêncio entre nós prevaleceu. Para acabar com o tédio, Hiago puxou seu celular do bolso e começou a jogar. Como sou vidrado nesses joguinhos, independente de plataforma, resolvi sentar-me ao seu lado e colocar o cabeção bem no meio da tela do celular, impedindo-o de jogar.

  • O que você está jogando? – perguntei-lhe.
  • Acerte o cabeção. – disse ele, empurrando minha cabeça para o lado. Uma senhora, próxima a nós, observava a cena rindo.
  • Não é assim que joga não, seu burro! – tomei-lhe o celular das mãos e comecei a jogar.
  • Grosso! – disse ele tomando o celular de minhas mãos. A mulher continuava rindo.

Prensei-o na parede. Nesse momento esqueci que estávamos em um hospital.

  • Vocês dois são irmãos? – A mulher que ria nos perguntava.
  • Infelizmente sim! – disse-lhe.
  • O médico enganou-se com ele e, ao invés da placenta, jogou o bebê fora! – continuou Hiago.
  • Eu sempre pedi para papai adotá-lo para outra família, mas ele nunca quis. – continuei com aquilo.
  • Dona Noely? A senhora é a próxima! – chamou a atendente.
  • Tchau, meninos! Adorei conversar com vocês! – E lá foi ela, sorridente.

Quando ela se foi, Hiago e eu nos olhamos por alguns instantes e caímos na risada. Nem nós havíamos entendido o que acontecera ali. Será, por fim, uma trégua?

Já até pensava em fazer as pazes, até que o idiota ligou a câmera de seu celular e tirou uma foto minha. Aquilo me deixou possesso. Novamente, estava eu tirando o celular de suas mãos tentando apagá-la.

Enquanto Hiago tentava me impedir de tal ato, Vívian aparecia naquela sala, ofegante.

  • Caramba! O sexo foi violento, hein! – exclamei.
  • Que nada! Aquelas velhas correm muito! Álisson, eu preciso muito da sua câmera. Não sabe o que eu vi! – disse ela, exaltada.
  • Não! Você ainda não me disse! – comentei.
  • Na sala em que Larissa se situa, há muitos cartazes e banners com palavras grafadas incorretamente. Preciso registrar em imagem estática para publicar em rede social. – explicou Vívian.
  • Você comeu jiló? Por isso que está aí falando tão difícil? – perguntou Hiago.
  • Aqui está! – disse eu, tirando a câmera do bolso. – Mas, antes de você sair, preciso te falar algo a respeito da minha câmera.
  • Pode dizer! – Vívian prestava bem atenção.
  • Esse botão liga e esse tira foto. – Fui apontando.
  • Palhaço! – e recebi um tapa na cabeça – Logo volto. Esperem aí!

“Esperem aí”. Para onde ela estava achando que iríamos?

Voltando para sala, lá estava a médica, jovem, 32 anos, solteira, lindos olhos azuis e de busto volumoso, a perguntar sobre o estado de Larissa.

  • Então, você me disse que estava chupando uma laranja de Hiago e vomitou, certo? – perguntou a médica peituda.
  • Sim! – confirmou Larissa.
  • Muito bem! Quem é Hiago? – perguntou a médica.
  • Larissa, Larissa! – chegou Vívian, eufórica.
  • Ela é Hiago? – perguntou a médica, apontando.
  • Sim! Ela é Hiago! – confirmou Larissa, séria.
  • Hiago, você poderia me dizer que espécie de laranja era essa que você deu para a nossa amiga João? – perguntou à Vívian, fazendo um belo papel de médica.
  • Não, não! Você não entendeu. João é o magrelo que me vendeu uma cola para a prova de Cris. Eu sou Larissa. – consertou.
  • Muito bem, Srta. Hiago. Você não tem vergonha de permitir sua filha João de colar na prova não? – continuou a médica com seu questionário.
  • Que filha o quê? Veja se eu sou mãe de um estrupício como esse! – Vívian sentia-se mal com tal comentário. E Larissa do comentário de Vívian.
  • Eu entendo. Nesse caso…

A médica levantou-se de sua cadeira e abriu a janela às suas costas.

  • Adeus mundo cruel.

Víamos apenas uma mulher atirando-se da janela, enquanto gritava. Entretanto, antes que ela pudesse se jogar, passou alguns minutos tentando passar pela janela, já que um de seus peitos havia se prensado em alguma parte daquela janela. Depois de se jogar, outro médico apareceu em seu lugar. Esse não era peitudo.

  • Oh! O que aconteceu com a mulher? – perguntaram Larissa e Vívian preocupadas.
  • Ah, não se preocupem. Quando a coisa aperta, ela sempre faz isso. Veem? Da janela para o chão não há nem 50 cm!
  • Fofoqueiro! – gritava a médica pela janela, indo embora logo após.
  • Então, Larissa. Vamos aos remédios. Você me disse que estava sentindo febre, dor, ânsia de vomito e diarreia, não é isso?
  • Diarreia não! – consertou Larissa.
  • Muito bem. Você sabe que isso é virose, não é mesmo?

Larissa deu um sorriso amarelo.

  • Olha, doutor. Cuidado com os remédios que você passar a ela. Muitos elas não pode, pois ela não bate bem da cabeça. Fugiu do manicômio há pouco tempo, então, ainda está se recuperando.

Larissa começava a rir como uma retardada.

  • Entendo. – Analisava o médico.
  • Certa vez, encontraram um amigo dela boiando na privada. Tudo isso porque ele disse a ela que seu dente havia caído lá.

Larissa continuava a rir da mesma forma. O médico apenas observava atentamente as expressões de Vívian.

Também não deve deixar de mencionar que até semana passada, ela estava tomando remédios de tarja preta.

Larissa ainda ria.

  • Muito bem! Vou receitar alguns remédios simples para você. Onde é que está?

Enquanto o médico procurava em sua gaveta alguma coisa, Vívian aproveitava para tirar fotos dos erros ortográficos que se encontravam naquela sala.

  • Aqui está! – o médico colocava uma receita já pronta em cima da sua mesa.

Larissa pegou a folha e começou a ler.

  • Não. – disse Larissa, calma.
  • Não o quê? – perguntou o médico, curioso.
  • Não entendo nada desses rabiscos que você escreveu aí. – continuou Larissa.
  • Não? Minha letra é tão perfeita! Como você não entende? – questionou o médico, perplexo.
  • Não ligue para ela! – disse Vívian. – Vamos embora, Larissa. Depois eu decifro essa coisa. Me liga! – disse ela, fazendo sinal de telefone para o médico.

Quando as duas voltaram à sala de espera, lá estava o pessoal amontoado, tentando apartar a briga que acontecia: Hiago e eu, como sempre.

  • Eu odeio você, seu gordo imundo! – gritei de um lado.
  • Vai chupar prego, seu magrelo desnutrido! – ele gritava de outro lado.

Larissa, ao ver a cena, foi ao nosso encontro, já gritando:

  • Vamos embora para casa agora!

Olhamos um para a cara do outro. O pessoal já nos soltara, mas ainda por perto, para evitar qualquer outra eventualidade.

  • Tudo bem, então.

E fomos embora, como se nada tivesse acontecido. Lá fora, fomos logo perguntando:

  • O que o médico disse?
  • Que ela é louca! – respondeu Vívian.

Enquanto rumávamos para casa, Vívian nos mostrava os erros nos cartazes. Palavras como “sombrancelha” e “rejuvenecer” eram claramente visíveis. Questionávamos o nível de graduação da pessoa responsável por isso e se era realmente confiável que Larissa fosse se tratar naquele lugar.

  • Confiável não é não. Mas, como é o único lugar que temos aqui… – respondeu Larissa.

Foi assim até chegarmos ao nosso destino. Lá, encontrava-se Paulinha, varrendo a casa novamente.

  • Paulinha! – disse eu, indo ao seu encontro, já abrindo os braços.
  • Ah, muito gentil! – e ela me entregou sua vassoura, tirou seu avental e foi para a cozinha.
  • Ah, sim! Uma vassoura – disse eu, nada animado.

Hiago já não nos acompanhava. Foi para sua casa tomar um banho. Larissa foi para seu quarto descansar um pouco. Vívian para a cozinha fazer um mingau ralo para nossa amiga.

Fui até a área onde Paulinha estava. Ela alimentava Champignon e Alice e tentava fugir do assustador Tio Lu.

  • Ai, tio Lu, larga de ser porco! – dizia ela com seus gritinhos histéricos, enquanto Tio Lu soltava seus gases com cheiro de esgoto mal tratado.

Quando finalmente todos encontraram algo para fazer, com exceção de Larissa que estava dormindo, fui para o computador e fiquei esperando por Hiago. Esperei, esperei e esperei. Lembrei-me de que estava coberto de lama e fui correndo para o banheiro, tomar um banho. Quando saio, deparo-me com aquele homem, todo suado.

  • Uau! Nem passeamos ainda e você já está nesse suor todo.
  • Gordo sua fácil! Eu não posso nem sair por um tempo que já começo a suar.
  • Também, esse sol norte-mineiro não é nada fácil! Vívian, estamos indo! – falei alto a última frase.
  • Tudo bem, meu amor. Mas, volte cedo para termos mais uma maratona de sexo! – ela disse, enquanto dirigia-se ao banheiro, dando uma piscadinha para mim no meio do caminho.

Fomos para a rua. Não deixei de notar que ele estava com uma roupa completamente diferente à roupa que ele usava de manhã. Para piorar, ele usava uma camisa branca, como a minha.

  • Tomou banho? – perguntei-lhe.
  • Sim! – respondeu-me.
  • Você nem estava sujo. E vamos sujar mais agora. Pra quê isso?
  • Eu não gosto de sair sujo assim. Eu vou para algum lugar, tenho que estar limpo. Não sou esses porcos por aí que saem de qualquer jeito.
  • Ah! Muito obrigado mesmo. Fico feliz com tal consideração.
  • Você passou protetor?
  • Não, nem me lembrei.
  • Branquinho desse jeito? Por isso que sua pele está toda acabada. Vai ficar velho logo, já até tem sinais.

Dei-lhe um tapa na cabeça.

  • Você sempre muito amável, Hiago!
  • Estou falando sério, mongol. Você não pode sair brincando com o sol desse jeito. Vai acabar desenvolvendo algum câncer!
  • Desculpe. Eu não tenho mesmo o hábito de passar. Então não vai ser de uma hora pra outra que vou acabar me acostumando.
  • Aprenda e seja feliz! – ele finalizou.

Eu ainda não conhecia bem aquela cidade, apesar de ser pequena, eu já ter andado por ela e já estar no meu terceiro dia por lá. Então, já fui fazendo algumas perguntas a Hiago, mesmo algumas sendo óbvias demais, para quebrar aquele gelo.

  • Aqui tem loja de cds e dvds?
  • Não!
  • Ah, droga! Eu adoro passear por essas lojas. Também não tem cinema?
  • Sim, claro que tem! Está passando um ótimo filme em 3D, você quer ir lá ver?

Sabia que era ironia dele. Então resolvi dar-lhe um tapa na nuca.

  • Hiago, o que vocês costumam fazer de bom aqui em Salinas?
  • Nada! Aqui nunca tem nada.
  • Epa! Um momento. Aquilo é uma livraria?

Era estranho o que eu havia encontrado de tão longe: uma livraria em Salinas. Eu precisava entrar lá para conferir. Livrarias me chamavam a atenção.

Entrei lá e foi aquela decepção: não era bem uma livraria, mas uma papelaria, com direito a materiais escolares, de escritório, decorações para casa e várias canecas do Atlético Mineiro e do Cruzeiro. Um fato interessante sobre o norte de Minas é esse: lá eles dão mais valor aos times mineiros que o pessoal do Triângulo.

Quando entramos, fomos logo olhando tudo que estava lá. Era pegar, analisar, comentar, criticar e colocar de volta no lugar. Era assim com todos os objetos por quais passávamos. Até que um rapaz, novo funcionário, chegou até nós e perguntou, educadamente:

  • Posso ajudá-los em alguma coisa?
  • Não, estamos só olhando! – dissemos aquela célebre frase.

Mesmo assim, o vendedor não parou de nos seguir, então, resolvemos incluí-lo nesse passeio.

  • Veja só, Hiago! O Banco Imobiliário! Eu costuma jogar isso quando era criança.
  • Ah, deixa eu ver. Caramba! Muito bom esse jogo!
  • E esse bichinho aqui, o que faz?

Olhamos para uns bichos de pelúcia. Alguns mexiam a cabeça, outros mexiam os braços e outros falavam: “Me larga, idiota”.

O vendedor sempre nos seguia. Sempre que perguntávamos algo, ele respondia:

  • Ah, eu não sei o que isso faz não. Ah, eu não sei, mexe aí pra ver se faz alguma coisa. Esse enfeite aí? Bom, eu também não sei para quê serve.

Era até engraçado. Ele não sabia de nada.

Também fomos à seção de times. Lá, vários bonecos de Cruzeiro e Atlético Mineiro. Como sabíamos que Larissa torcia para o Galo, fomos procurar algo para ela:

  • Ah, Hiago, mas esses bichos de pelúcia são muito feios. Ela não vai gostar de nenhum.
  • É, você tem razão.
  • A propósito, qual seu time?
  • Sou cruzeirense e você?
  • Não, eu não gosto de futebol. Cruzeiro, é? Deve ter uma briga boa com Larissa.
  • Ah, não. Não somos muito fissurados em time. Às vezes rola uma zoação, mas nada de mais.

Naquela papelaria, ou livraria, como eles gostavam de denominar, vendiam sim alguns livros. Mas, era uma pequena estante com poucos exemplares. Até meu acervo pessoal era mais rico, digamos assim.

Despedimos do vendedor e saímos. De fora, comentei com Hiago:

  • Aquele vendedor não sabe nada, não nos informou nada, mas, sei lá, eu fui com a cara dele.
  • Eu também. Ele é bem simpático. Não é sempre que encontramos algum vendedor com bom senso como ele.
  • Nem me diga! Muitos da minha cidade, quando você entra na loja, já te olham de cima a baixo.
  • Não é tão diferente de Montes Claros.

Continuamos nosso passeio. No meio da cidade, havia um mercado municipal, ou uma espécie de camelódromo. Para resumir, era onde o pessoal se reunia para vender muamba. Hiago relutou em entrar naquele lugar, mas eu precisava conhecer, mesmo que também não gostasse muito. Para se ter uma ideia, até hoje tenho receio de entrar no camelódromo, denominado Shopping Popular, da minha cidade.

  • Vamos, Hiago! Eu quero conhecer.

E lá fomos. O cheiro era terrível. Incrível imaginar como ainda havia aqueles que conseguiam comer lá dentro. Eu teria feito vômito.

Depois da área de alimentação, porque dizer praça é um equívoco, víamos perfumes, pulseiras de relógio, bijuterias, utensílios domésticos e até alguns eletrônicos do Paraguai. Ladeando aquele mercado, algumas lojas de roupas com vendedoras nas portas que nos chamavam para entrar:

  • Venham, venham! Tudo muito barato, roupas bonitas, calçados confortáveis. O preço ó! Lá embaixo.

Ela precisava mesmo ter enfatizado que aquilo estava uma pechincha.

Depois do mercado, entramos em várias outras lojas. Lojas de enfeites para a casa eram as preferidas de Hiago. Entrávamos, analisávamos e esperávamos os vendedores falarem sobre o produto. Para finalizar, sempre ouvíamos:

  • Se vocês levarem agora, divido em três vezes no cartão, tudo sem juros. Produto de qualidade. Muito baratinho!

E sempre respondíamos com a mesma frase:

  • Não! Não temos dinheiro. Nem trouxemos a carteira. Estamos só olhando. Mas, viremos da próxima vez e levaremos alguns.

Voltar da próxima vez. Para mim, o vendedor teria de esperar eu voltar mesmo para Salinas. Sabe-se lá quando isso aconteceria novamente.

Também entramos naquelas lojas de presentes, que vendem jogos de tabuleiro.

Ao chegarmos à praça dos bancos, a mesma em que Vívian dançara sensualmente, Hiago perguntava se eu não gostaria de tomar um sorvete. Pedi um pouco de tempo. Subimos num coreto e lá conversamos um pouco sobre a vida. Naquele instante, nada de briga, nem discussões. Tudo entre nós estava em paz.

E para comemorar, fomos até a padaria próxima para tomarmos um sorvete. Como eu preferia picolé, resolvi pedir. Hiago fez o mesmo. Naquela cidade, só existia uma marca de sorvete, a “Kigelado”. Algo bem criativo, como vocês podem notar.

  • Uau! Que gelado esse picolé! – dizia uma das crianças que passava.

Continuamos andando. Quando estávamos quase chegando ao fim da cidade (deveríamos ter andado menos de dois quilômetros). Encontramos algumas pracinhas. Eram pracinhas bonitas, mas não muito arborizadas, o que fazia falta. Aproveitamos para descansar um pouco, sob aquele sol escaldante.

  • Hiago, até que você não é uma pessoa ruim. Estou gostando desse nosso passeio.
  • É! Você também não. Você é um pouco menos chato do que eu imaginava.

Ri um pouco. Trocamos o número de nossos celulares e após mais alguns minutos de conversa, voltamos a andar. Alguns caminhos eu queria conhecer, mas Hiago sempre me dizia que nada tinha por lá, então resolvemos ir embora. Será que ele queria me esconder algo?

Ao nos depararmos com uma loja de roupas resolvemos entrar, mesmo ainda com aquele picolé na mão. Fui olhando as roupas, pegando-as com a mão suja mesmo. Então, se você, meu amigo, morador de Salinas comprou uma roupa dessa loja e viu uma mancha marrom no tecido, não se preocupem: é mero detalhe da roupa mesmo. Ops!

Vi algumas roupas bonitas. Pena que eram todas caras. Como eu não poderia gastar tanto naqueles dias, apenas demonstrei interesse. E Hiago me acompanhava, dizendo o que ele gostava e não gostava. Alguns de nossos gostos batiam e outros não.

No balcão, havia uma foto de um modelo com uma camiseta muito bonita. Apontei para ele e comentei com Hiago:

  • Olha como essa camiseta é bonita!
  • Qual camiseta? Uau! Linda mesmo! – exclamou Hiago, ao ver a foto do modelo.

De princípio não tinha entendido muito bem aquela exclamação, mas quando olhei novamente e reparei bem na foto, comecei a rir descontroladamente. A vendedora ainda perguntou se eu não estava sofrendo de alguma convulsão.

Quando o relógio já marcava 13 horas, fomos ao supermercado. Antes de sair, Vívian havia me entregue uma lista de compras e já havia me alertado:

  • Hiago é compulsivo por ketchup. Então, se vocês passarem por algum, empurre Hiago, amarre um saco de milho na cabeça dele o expulse do supermercado.

Dito e feito. Quando entramos no supermercado, a primeira coisa que ele fez ao passar por aqueles ketchups foi colocar um no carrinho.

  • Não! Isso não vamos levar! Apenas extrato de tomate!

Levamos arroz, extrato de tomate, refrigerante, algumas frutas e verduras e um pouco de ração barata para Tio Lú, o cachorro doente. Eu notava como naquele supermercado, como alguns produtos não haviam sido lavados e foram jogados na geladeira imediatamente após terem sido tirados de suas respectivas caixas. Algo bem nojento.

  • Se eu tivesse um pouco mais de coragem, eu reclamava com esse pessoal, Hiago. É sério!

Na seção de frios, Hiago chegou a me repreender. Como ele era vegetariano, pelo menos naquele momento, chegou a discutir comigo que eu também não poderia comer presunto. Mussarela sim! Presunto, não!

  • Não vai levar isso não!
  • Hiago, eu respeito você por ser vegetariano. Respeite-me por eu comer carne! Eu não como bauru sem presunto!
  • Bauru? O que é isso?
  • Aqui vocês devem chamar de misto quente. É o pão de forma com presunto, mussarela e tomate.
  • Aqui não colocamos tomate no misto quente.
  • Muito bom saber.
  • Não interessa! Você não vai levar presunto.
  • Vou sim! Cento e vinte e cinco gramas de presunto, por favor. – disse ao “fatiador” de presuntos, que nas horas vagas também fatiava mussarela.
  • Não sei como vocês conseguem comer carne morta.
  • A carne viva é que eu não vou comer!

Depois de realizada a compra, pedimos que a entregassem no endereço de Larissa e fomos procurar algo para comer.

  • Onde você me indica para ter uma boa refeição, Hiago?
  • Lembra-se daquela padaria que fomos daquela vez com Erich?
  • Sim! Tem algum lanchinho lá perto?
  • Não! Estava falando de lá mesmo.

Quando estávamos quase chegando, Hiago apontou para uma placa do outro lado da rua.

  • Olha aquela placa ali, Álisson! Escreveram confiar com M. Olha só!
  • Onde? – perguntei.

Quando eu avistei a placa, uma manada passou bem em nossa frente. Depois, um desfile de gorilas e, por fim, um trem de ferro. Depois de toda essa mentira deslavada, finalmente consegui ler o que estava escrito:

Loja de celulares “comfiamssa”. Em nós, você pode “comfiar”.

  • É porque essa palavra vem do verbo “Com fio”, entendeu, Hiago?
  • Ah… Não!
  • Pensando bem, eu também não.

Quando rumamos para o outro supermercado para procurar o que estava faltando, nos deparamos com uma amiga de Hiago. Eles se cumprimentaram e assim foi o diálogo:

  • E aí, gatinho? Pronto para virar essa noite?

E ela passou um dedo pelo corpo dele como se o seduzisse. Eu olhava aquilo, meio de vela, sem graça. Por isso, fiquei de costas e fui vendo os carros passarem na rua. Se bem que, naquele momento, não havia passado carro algum.

Quando ela se foi, sem notar minha presença, logo fui perguntando:

  • Que intimidade, hein? Não vai me dizer que estão tendo um caso. – perguntei, brincando com aquela situação.
  • Nem rola. Ela é lésbica. – disse ele, normalmente.
  • Ah, então vocês formam um lindo casal. – Sorri.

E depois de todos aqueles comentários, fomos ao supermercado, depois comemos alguma coisa na padaria e entramos em outras lojas. Numa das revendedoras de certa marca de celular (não citarei qual para não criar qualquer vínculo), chegamos a discutir sobre um eletrônico que ele insistia comigo que não era um tablete, devido ao pequeno tamanho. Ele fez questão de perguntar para a vendedora que confirmou. Eu lá tenho culpa se aquele garoto só gostava de coisas grandes?

No final, entramos em uma daquelas lojas de perfume que tem por todo canto (não aquela que todo mundo conhece, mas uma menos conhecida), onde uma simpática e bela vendedora sentava-se atrás de um balcão.

  • E aí, vamos? – perguntei-lhe.

Hiago ainda tentou relutar para não entramos naquela loja.

  • Vamos lá! Você vai ver como é fácil tomar um banho de perfume sem pagar nada.

Enquanto entrávamos na loja, algumas pessoas apareciam na República Conosco, como Letícia, João e Izabella para fazerem trabalho. Quando perceberam que eu não estava, João e Letícia logo perguntaram para Larissa:

  • E Álisson, onde está?
  • Foi dar uma volta por nossa enorme cidade com Hiago.
  • Hiago e Álisson estão juntos? – perguntaram ambos, assustados.

Quem via de fora certamente teria a mesma reação. Como dois garotos que, até há pouco brigavam por quaisquer motivos andavam sossegadamente pela cidade?

  • Vai ver, eles precisam de um palco maior para se matarem! – concluiu João, dando mais um de seus sorrisos.

Na loja, experimentávamos alguns perfumes. Era um espirra pra lá, espirra pra cá, espirrada no olho, olho ardendo, vendedora sendo enforcada…

A cada respirada em um perfume, uma cheirada no café. Perfume um, uma cheirada, perfume dois, segunda cheirada. Como eu gostava muito de café, cheguei a ficar bons minutos cheirando aquilo.

  • Você não tem um perfume com cheiro de café não? – perguntei-lhe.
  • Como você consegue gostar de um cheiro ruim disso? – Hiago me perguntou.
  • Filho, para você ter uma ideia, quando as meninas que fazem a limpeza no meu serviço fervem água para o café, eu fico bons minutos na cozinha só para sentir o cheiro. Sou viciado! Mas, caso me pergunte, odeio tomar café.
  • Você é estranho! – ele comentou.
  • Você ainda não viu nada.

Aquela discussão também se fazia nos perfumes. Cada um com um gosto diferente: o que eu gostava, ele detestava e vice-versa.

  • Temos alguns perfumes sim com notas de café… – a vendedora começou.
  • Espera um pouco. Notas de café? Elas tocam em alguma banda? – perguntei.
  • Não, senhor! O caso não é esse…

Ela foi me explicando que cada perfume possuía determinadas notas de certos aromas até comporem o odor final. Para mim, leigo, era tudo água perfumada. Ou melhor, era “Água de Cheiro”.

  • Esse parece ser muito bom! – Pedi a ela um dos perfumes que me chamara a atenção. Ela o pegou e o espirrou em mim.
  • Não gostei desse também não. Parece essência de gambá! – reclamou Hiago.
  • É francês. Chama-se Le gambé. – comentei.
  • Mas, vocês não concordam em nada mesmo! – a vendedora comentou.
  • Quanto está esse? – perguntei.
  • Ah, não! Você não vai levar esse fedido não, né? – Hiago continuou.
  • São 56 reais. – disse a vendedora, enquanto um tijolo caía em minha cabeça.
  • É, não vou não, Hiago. Também achei muito fedido. – comentei, referindo-me ao valor do produto.

Fomos para a seção de perfumes femininos. Uns muito doces, outros com um aroma perfeito para a mulher, é claro.

  • O que você acha desse perfume? – A vendedora perguntou a Hiago.
  • Esse é muito bom! – ele comentou.
  • Então! Ideal para você dar à sua namorada! – a vendedora estava tentando Hiago.
  • Eu não tenho namorada. – disse Hiago, cabisbaixo.
  • Quando você tiver uma. – comentou a vendedora, tentando reanimá-lo.
  • Não tenho e nem vou ter. – continuou Hiago.
  • Por quê? – perguntou a vendedora meio preocupada.
  • É porque eu não gosto. – E Hiago encerrou o assunto por aí.
  • Ah, sim! – respondeu a vendedora, sorrindo sem-graça.
  • Esse eu não gostei. Eu não daria para uma namorada minha, mesmo que ela gostasse. Até porque quem vai cheirá-la sou eu! – Machista, eu? Nem um pouquinho.
  • Realmente, você tem que dar algo que agrade a você! – Disse a vendedora, tentando me passar a perna para vender o produto, enquanto quase o enfiava em minha cara.
  • Não, eu também não tenho namorada. – comentei com um sorriso meio amarelo.

Ela aproveitou para mostrar outros produtos.

  • Gostaram de algum? Vamos levar um, vamos! Baratinho!

E ela continuou a espirrar alguns perfumes, enquanto Hiago e eu discordávamos.

  • Esse é meio doce.
  • Assim é que é bom.
  • Meu Deus! Eles não concordam com nenhum! – disse a vendedora caindo na risada.
  • Queria levar esse aqui – mostrei a ela aquele mesmo perfume que Hiago tinha dito ter essência de gambá – mas, está muito caro. Não tem um mais barato não?
  • Eu tenho o desodorante. Custa apenas R$ 15,60.
  • Faz a quinze? – pechinchei.
  • Não posso. O patrão vai me matar! – ela fez carinha de ‘por favor, não faça isso comigo, eu imploro’.

“Oh!” – pensei. “Que rostinho mais bonitinho!”. Mesmo assim, não deixei me levar. Se ela quisesse me vender, teria que fazer o desconto que eu estava pedindo.

  • Já que não tem outro jeito. – e lá foi ela embrulhando o desodorante, para eu levar.

Quando saímos da loja, ainda comentei com Hiago.

  • Sabe de uma coisa? Eu nem queria comprar nada. Mas, aquele rostinho me encantou e só com a simpatia ela me ganhou. – dizia eu, nas nuvens.
  • Eu acho que ela pensou que éramos um casal – Hiago me fez despencar das nuvens em apenas um segundo.
  • Deixe isso poluir os sonhos eróticos que ela tiver. – brinquei.

Era esse o fim do passeio. Logo depois, fomos para a casa, onde os meninos continuavam a fazer o trabalho. Eu jogava Nintendo DS, no meu cantinho, enquanto os meninos proferiam palavras que, na minha opinião, eram palavrões.

  • Temos que fazer a GD, isso vale nota! – gritava João de um lado.
  • João? – puxei João para perto de mim, pela manga da camiseta – O que é um GD?
  • Grupo de discussão! – disse ele, sorrindo, mas quase caindo em mim.
  • O que você achou de nossa bela e maravilhosa cidade? – ele me perguntou.
  • Feia e horrorosa. – comentei – Mas gostei dela. Virei para cá mais vezes.

No fim do dia, tomamos um lanchinho. Larissa fez a pipoca (de micro-ondas), enquanto Brunna fazia o suco (com pó de gelatina). Para piorar a situação (vocês perceberam que nesse dia tava crítico, né?) e após Larissa queimar alguns pães de queijo, o pessoal pediu para eu preparar o café:

  • É, filho! Vai fazer o café que você não está fazendo nada! – disse Letícia, brigando comigo.

Eu poderia muito bem arrastar a cara dela no chão vermelho daquela sala, mas, não! Eu precisava mesmo atender aos pedidos dela! No final, meu café ficara doce e ralo. E o mais importante: Letícia tinha ido embora antes mesmo de provar o meu café! (Minha vingança não seria feita naquele dia).

  • Vívian, não tome o café! Ele está terrivelmente doce. Não vai te fazer bem. – Ainda alertei.
  • Tudo bem! Hmm… está uma delicia! – disse ela provando um pouco do café.

Minutos mais tarde, perguntei à Larissa se ela não tomaria um pouco, enquanto Vívian tremia como se sofresse de epilepsia, no chão, atrás de mim.

  • Não, obrigada! Estou bem desse jeito! – disse Larissa, evitando meu café, enquanto Vívian começava a ter convulsões sérias.
  • Vívian está passando mal! – gritava Paulinha.
  • Ah! – disse eu, olhando para trás e ignorando a cena completamente, voltando à Larissa.
  • Quando eu estiver passando mal, dê mais valor! – disse Vívian, levantando-se e me empurrando no chão, saindo de cena logo em seguida.
  • Alguém entendeu alguma coisa? – perguntávamo-nos.

À noite, o pessoal ainda fazia um pouco de trabalho. Hiago, em sua casa, chegou a perguntar à Larissa se eu poderia passar um pouco por lá. Relutei um pouco.

  • Estou morrendo de preguiça de subir aquelas enormes escadas – comentei.

Mas, ele insistiu, e resolvi ir para lá, mesmo depois de o relógio marcar meia-noite. Aproveitamos para ver os shows de Paula Fernandes que ele tinha gravado para treinarmos para o show que aconteceria dentro de dois dias. Como eu estava bem por fora, improvisava para cantar mesmo. Depois, aproveitamos para ouvir outras músicas e comparar nossos gostos musicais que, dessa vez, combinavam mais que os de perfume. Finalmente, nos tornávamos amigos.

Na rua, Sol continuava a vagar sem destino. Ela estava com fome e com frio, mas não com sede, após tomar um pouco da água empoçada que havia em um dos buracos. Sol já se arrependera de ter deixado aqueles cuidados que tanto lhe proporcionaram conforto, até que algo lhe fez mudar de ideia: um cachorro, alto, forte e num carrão importado. Ela entrou de carona e foi logo ordenando:

  • Pisa fundo, meu cachorrão!
  • Vamos para o baile funk, sua cachorra.

Do outro lado da cidade, a vendedora de perfumes discutia com seu patrão por ter descontado sessenta centavos do perfume que ela me vendera. Sim! Eles discutiam às três da manhã, e nem casados ou namorados eles eram. Nem sequer amigos.

Voltei para a casa muito tarde tentando fazer o menor ruído. Faltava apenas duas horas, mais ou menos, para o dia começar a clarear. Dormiria pouco para a viagem de amanhã e aquilo não seria bom. Tudo bem, essas coisas acontecem!

Quando entrei em casa, tirei os chinelos e fui andando sorrateiramente. Larissa havia me entregue as chaves, mas como as portas eram muito duras, ficava quase impossível não fazer qualquer ruído. E tudo acontecia como as Leis de Murphy: quanto mais eu tentava fazer silêncio, mais barulho eu conseguia fazer.

O escuro também não ajudava. Depois de ter feito um estrondo com a porta de entrada, bati meu dedinho no pé de uma das cadeiras de ferro que se encontravam frente ao quarto de Vívian. O barulho foi feio, mas não tanto quanto a ferida que havia aberto. Eu pulava tentando não gritar de dor, mas já era quase inevitável não terem percebido. Vívian levou um susto, mesmo não ter levantado da cama, os cachorros latiam e as três garotas, Tchely, Brunna e Paulinha que dormiam juntas, caíram da cama, uma em cima da outra, seguindo do grito de Paulinha, que chegou a ficar embaixo.

Ainda pensando que eu não havia acordado ninguém, continuei o meu caminho para o quarto de Larissa. Champignon chegou a sair do quarto para me dar uma boa cheirada. Com medo de não ouvir mais qualquer latido, decidi não fazer qualquer movimento brusco. Ao abrir a porta do quarto de Larissa, tentando parecer o mais silencioso possível, eis que a garota se mexe, aponta o celular em minha direção e acende a sua luz. Com aquela claridade, comecei a derreter.

Quando Alice começou a lamber meus restos mortais, lembrei-me de que não era um vampiro e voltei ao normal. Larissa ainda tentava identificar o ser estranho que continuava parado ali na porta, mas não se lembrava de que tinha uma visita em casa. Resolvi esclarecê-la:

  • Relaxa, sou eu!
  • Eu quem? – ela perguntou. Mas, antes que eu pudesse responder, ela já caía de sono.

Para a minha sorte, ela não chegou a pensar que era algum estuprador, sequestrador ou coisa do tipo. Talvez, se realmente fosse, ela estaria mais segura. Coitadinha!

Fui já deitando na cama, puxando lençóis, travesseiros, cobertas e empurrando os cachorros que se encontravam no meu caminho. Foram horas difíceis. Mesmo com tanto sono, só consegui dormir depois de um bom tempo. Mas aí…

  • Levanta, Álisson! Precisamos ir pra faculdade. – O novo dia começara.


Mais ou Menos Salinas (3)

Capítulo 3: Conhecendo o instituto

Era uma vez, uma gata xadrez que andava pela rua seis. Essa gata estava à procura de alguma comida para seus filhotes. Quando um motoqueiro passou, ela pulou em sua garupa, mesmo sem saber o destino. E lá foi o pobre felino tentando se segurar naquele vento.

Era sábado. O motoqueiro estacionou no Instituto Federal do Triângulo Mineiro, campus Ituiutaba, onde estudava. A gata, ao perceber que estava no meio do mato, deu um tapa em sua testa, perguntando-se onde teria se metido. O jovem motoqueiro caminhava para sua sala, onde fazia sua pós-graduação.

E lá também estava eu. Duas semanas depois de ter perdido aula, sentado ao lado de uma antiga amiga de faculdade, Carolina. Eu contava a ela sobre as coincidências da vida:

  • Larissa me ligou esses dias. Disse que conseguiu passar numa federal também.

Larissa também estava empolgada. Assim como eu, ela passara em uma federal, o Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, campus Salinas, e também perdera duas semanas de aulas.

Coincidências ou não, nossas histórias, mesmo estando tão distantes, se assemelhavam. Com a faculdade não era diferente. E, como eu já havia recebido um convite da garota, era mais que justo que um dia eu fosse conhecer o outro IF.

  • E você vai ver, Carolina. Um dia eu irei conhecer sua faculdade.

E lá estava eu, cinco meses depois de ter dito essa frase. Antes, eu e Larissa disputávamos pra ver qual era a pior:

  • Ah, você tinha que ver nossa biblioteca! – dizia ela – Uma vergonha para uma federal!
  • Pelo menos a sua tem livros! – dizia eu.
  • Ah, mas a nossa é uma fazenda! – ela continuava.
  • Sim, mas a nossa é puro mato. E só tem dois pavilhões. – eu insistia.

Aquela discussão parecia não ter fim. Mas, naquele instante, nada disso importava. Era indescritível a sensação de estar pisando ali. Poderia não ser o melhor lugar do mundo, mas para mim pouco importava. Era um sonho que, finalmente se realizava.

  • Conhecer o IFNMG, feito! – disse para mim mesmo, riscando essa informação de um pedaço de folha de caderno, antes de voltá-la para o bolso.

Sim! Eu estava tão empolgado de estar ali, que resolvi mandar uma mensagem para Carolina naquele instante. Os dizeres “Estou no IFNMG” mal saíram de minha caixa de saída e eu já sacava minha câmera do bolso para tirar fotos, com intuito de lhe mostrar quando voltasse. No mesmo instante, Carolina pegou seu celular do bolso, leu a mensagem e anunciou para todos que estavam ali perto:

  • Ele conseguiu! – era o que ela dizia, enquanto todos da rua, estranhos a ela, olhavam-na com cara de “que retardada!”.

Mas, antes de falarmos do lugar, vamos voltar ao início do dia.

Seis horas da manhã, o telefone de Larissa começava a tocar. E eu pensando que, naquelas férias, não teria que ser obrigado a levantar tão cedo! Como estava em seu quarto, ela já foi logo me perguntando enquanto eu abria os olhos:

  • Você vai pro instituto?
  • Sim! – dizia eu, meio a murmúrios.
  • Então, levante-se para não chegarmos atrasados. – e ela atirou uma almofada em mim, pouco antes de Champignon subir na cama.

Levantei-me, troquei de roupa, penteei o cabelo, tomei café, escovei os dentes, peguei a câmera, o DS, a carteira e tudo mais que eu tinha direito. Quando estavam quase todos prontos, Hiago tocou a campainha e entra. Vívian bate no quarto de Tchely, perguntando se ela iria conosco:

  • Pode ir na frente, eu pego um táxi depois! – E voltou a dormir, rolando e derrubando Paulinha no chão.

Então, fomos Larissa, Vívian, Hiago, Brunna e eu para o ponto de ônibus. Quando ele parou, subimos. Recebi logo uma “facada” quando soube que precisava pagar 75 centavos pela passagem. Tive vontade de dizer à cobrada que dinheiro não nascia em árvore, mas deixei para lá, já que eu estava em Salinas.

E lá fomos. No ponto seguinte, João e Letícia subiram. O coletivo já estava bem lotado. Alguns iam em pé e outros sentavam em colos alheios. Larissa aproveitava a ocasião para me apresentar alguns colegas:

  • Tá vendo aquele cara ali sentando ao fundo? É João Pedro! – dizia ela, enquanto apontava.
  • Larissa, não aponte para aquele garoto! – apontei também – Já pensou se ele diz alguma coisa? – João Pedro viaja profundo em seus pensamentos, enquanto olhava para fora do ônibus.
  • E aquela ali… – continuava ela, enquanto apontava.

Ao fim da cidade, o instituto se encontrava. Era um lugar interessante de se ver, principalmente para quem ia apenas a passeio. Era notável, pelos prédios, que o instituto já possuía alguns anos de vida, ao contrário do que eu imaginava, já que o IFTM não completara nem cinco anos de funcionamento.

Ao descermos da condução, encontramos mais alguns centos de jovens desesperados, por estarem em época de provas. Entre elas, Catarina, que eu havia conversado noite passada, via internet.

  • Ah! Você é o Álisson? Muito prazer! – dizia ela, enquanto me cumprimentava com um beijo no rosto.

E lá fomos nós, subindo para a sala de aula, ladeados por um enorme grupo de estudantes desesperados em época de provas.

  • Vocês estudaram? Estou com muito medo dessa prova! Uma das mais difíceis que já fizemos até agora!
  • O capítulo 14! Eu não estudei o capítulo 14!
  • Alguém viu minha aranha? Ela estava aqui agora há pouco!
  • Aranha? Aaah! Socorro! Tem uma aranha dentro da minha calça!
  • E você não é a única, bobona! – dizia um enorme travesti que passava por ali.

Era engraçado ver tamanho desespero. Lembrava-me dos meus tempos de faculdade em que, segundos antes da prova, eram tempos preciosos para tentar absorver o máximo de informação possível.

Enquanto subíamos a pé, o professor Leonardo passava de carro sem olhar para os lados. A prova, nesse dia, era dele. Talvez tenha sido por isso que ele preferiu não dar moral para ninguém.

Quando chegamos à sala, o pessoal se despediu de mim e entrou. Alguns pediram que eu entrasse e fizesse a prova por eles. O que seria melhor para qualquer um ali da veterinária, já que sou formado em Sistemas de Informação.

E lá estava eu, sozinho, sem ninguém. Não pude deixar de reparar que aquele lugar parecia uma fazenda mesmo, com prédios antigos, barro e mato por todos os lados, além de vacas, porcos e bezerros misturados a tantos outros animais, que me fazia sentir como um também. Então, para conhecer melhor o lugar, fui dar uma volta.

Larissa já estava avisada: Quando terminasse a prova, era para me dar um toque e eu retornava à sala de aula. Isso se eu não me perdesse no caminho. Pensei até em comprar um pãozinho para ir jogando pelo chão para fazer uma trilha, mas achei isso muito “João e Maria”. Então, resolvi deixar para lá.

Agora, contarei a vocês um pouco do que vi. Um barracão ainda não terminado cercado por tantos pneus velhos, que dava até medo de olhar e encontrar alguns ovos de certo mosquito periculoso, envolto por mato queimado. Depois, tirei fotos de algumas árvores que embelezavam o local. Lá também poderiam ser visto algumas hortas, alguns bezerros e até um campo de futebol. Também se viam tratores, um pequeno lago e uma bela paisagem dos morros de Salinas.

Era de se encantar aquela vista. Em minha terra, uma vista como aquela não era comum. Então, aproveitei cada momento.

E eu sujei o meu tênis. Aquele tênis branco já não seria mais o mesmo. Como eu já havia dito, apesar de uma paisagem tão bonita como aquela, encontrávamos mato, terra e buraco em todos os lados. Até carroceiro passava às vezes por ali.

Nem percebi quanto tempo passara. Quando vi, o relógio já sinalizava oito horas. Para me ajudar a voltar ao meu destino, um rastro de cavalo me apontava a direção. Já chegando à sala, Larissa me dava um toque no celular indicando que terminara a prova. Não precisei atendê-la, pois já estávamos à vista do outro.

  • Como foi de prova? – perguntei-lhe.
  • Fechei! Uhul! – ela comemorava.
  • Conseguiu fazer todas as questões? – sentei-me ao lado dela.
  • Sim! Era pra eu ter ficado mais um pouco lá dentro, mas parece que ninguém consegue me entender! Eu posso gritar que ninguém vai saber colar a resposta.
  • É porque você tem que mandar um SMS com a palavra cola, para que eles possam receber dicas de como colar. Eu já te ensinei isso.
  • Ah! Eu não me lembrava. – dizia Larissa, antes de atirar sua cara na lama, de vergonha.

Aos poucos, a galera foi aparecendo. João, nesse instante, apareceu com um largo sorriso para meu lado.

  • Pela cara, você foi muito bem!
  • Que nada! Me ferrei! – dizia, sem apagar o sorriso.

Letícia também apareceu. Aproveitei para tirar uma foto dela. Ela me correspondeu de forma muito bela: levantou seu maior dedo e o apontou para mim. Tive vontade de respondê-la, mas deixei para lá.

Tchely também saíra. Ao vê-la, quase caí para trás. Ela não estava no ônibus e eu não a vi entrar na sala. Então, como ela foi parar ali?

  • Você nunca saberá! – dizia ela, demonstrando um sorriso maléfico, demonstrando que acabara de ler meus pensamentos (ou, talvez, apenas o script do presente filme).
  • Foi bem de prova? – perguntei, voltando ao normal.
  • Não! Você não quis fazer a prova para mim! Por que você não quis fazer essa prova? Por quê? – ela dizia cada vez mais alto, enquanto me chacoalhava, fazendo minha cabeça bater no cercado de madeira.
  • Minha querida Tchely. Venho por meio desta, informar-lhe que a prova realizada até há pouco não se encontrava de nível de dificuldade inferior como a prova subsequente que, acredito eu, será. Portanto…

Neste momento, levantei-me, olhei fundo nos olhos dela, aproximei-me bem devagar e fui alterando o volume de minha voz cada vez mais:

  • PARA DE ME DEGOLAR!

Sempre aprendi que termos como “Venho por meio desta” não é correto de se dizer. Mas, dizendo em voz alta, aquilo soava tão formal, que decidi deixar assim mesmo.

Depois, saíram João Pedro e Camila, um dos casais da turma. Como todo bom namorado, João Pedro sentou-se em um toco e Camila sentou-se em seu colo. E foram discutir as questões. Como eu não era participante, fiquei apenas de expectador.

Neste instante, foi a vez de Arthur sair. Ele veio correndo e logo foi perguntando à Larissa:

  • O que você respondeu na segunda questão?
  • Lente ou cristalina.
  • Cristalina? Eu só pus lente! Eu me esqueci da cristalina! Eu não acredito que me esqueci da cristalina!
  • Vamos deixar esse maluco aí? – Larissa sussurrava para João, Letícia e Vívian, que também já estava lá.

E lá fomos nós, enquanto Arthur não parava quieto.

Enquanto caminhávamos em direção ao pátio, João e eu trocávamos algumas ideias:

  • O que você ficou fazendo esse tempo todo?
  • Estava andando pelo instituto para conhecer!

Tirei minha câmera do bolso e a entreguei para que ele pudesse ver as fotos que havia tirado.

  • Gostou do que viu?
  • Sim! Aqui é muito legal! Apesar de parecer uma fazenda mesmo. Vocês devem se sentir muito em casa.
  • E como! Aqui é maravilhoso, com tantos bichos, tantas árvores, tanto… argh!

João parou de falar, ao pisar num monte de esterco de cavalo. O mesmo rastro que me guiara para a sala de aula.

  • Mas, por que aqui tem tanto prédio antigo? – disse eu, ignorando o fato acontecido e o puxando pelo braço direito.
  • Aqui era uma escola agrotécnica, com alguns cursos técnicos e ensino médio. Também temos muitos cursos superiores, mas a nossa é a primeira turma da medicina veterinária.

E então, João começou a nos apresentar alguns lugares.

  • Como você pode ver, ali estão as quadras. Ali, encontramos a biblioteca. Em frente, a direção, depois a secretaria e ali fica o pátio. Ah! E ali, encontramos uma coisa que, com certeza, é de seu interesse: o laboratório de informática!
  • Uau!
  • E, acredite! Tem computadores lá dentro!
  • Uau! Êpa! Peraí, Joãozinho. Aquele laboratório está em reforma! – falei, indignado.
  • Ele só estava querendo te impressionar, bobo. Não temos laboratório de informática não! – dizia Letícia, estragando o momento feliz de João, mesmo sem desfazer seu sorriso eterno.
  • Temos um sim, ok? – falava João, com voz alterada para Letícia! – apesar de serem computadores bem antigos e não ligarem, existem computadores naquele laboratório!
  • Ah! Entendi! Laboratório de manutenção de computadores! Na minha antiga faculdade tinha um! – eu disse a ele.
  • Não. O laboratório é para consultas do aluno mesmo. – completava João.

Preferi ignorar. Então, ele continuou a representar o papel de meu guia turístico.

  • Essa escola já tem mais de 50 anos. Mas, há pouco tempo, tornou-se o Instituto Federal de Ciências e Tecnologia do Norte de Minas Gerais. Coisa de gente fina.

Olhei para João de cima a baixo e confirmei o quão fino ele era. Sim, ele era magrelo.

  • É! Você tem razão!

E lá foi nosso grupo se deslocar para a praça de alimentação. Pensei que fosse algo grandioso, mas era apenas uma pequena janela com uma moça dentro, oferecendo alguns salgados de frango e presunto para os alunos, em troca de um real e vinte e cinco centavos. Enquanto isso, duas alunas da veterinária conversavam ali perto:

  • Meu pai tem um granjeiro. Esses dias, uma das nossas galinhas ficou doente. Tentamos de tudo para salvá-la. Eu a amava tanto! Mas, não conseguimos. Chorei muito quando papai me deu a notícia.
  • Que coisa triste, amiga!
  • Muito triste! Tivemos que sacrificar o pobre bichinho.
  • Pobre galinha! – dizia a garota, enquanto ambas davam uma bela mordida numa empada de frango.

Ao lado, também estava uma pequena roda do grupo de veterinária. Aproximamos. Notei que havia um pátio ali do lado. Alunos de outras turmas encontravam-se ali, mas o papo da turma de cá estava mais animado.

  • Galera, alguém sabe quando vamos pra Montes Claros? – perguntava Tâmara.
  • Ouvi dizer que na quinta-feira. O ônibus vai sair bem cedo. – dizia Peu.
  • Mas, vamos antes ou depois da prova? – perguntava Tâmara.
  • Antes. Aí vamos para Montes Claros e voltamos para fazer a prova. – respondia Peu.
  • Ai, Peu! Larga de ser grosso! – respondia Rhangnys.

Sim! Esse é o nome da garota. Até hoje, não se descobriu a origem disso.

  • Como as turmas vão ser divididas? Larissa? – Virou Izabela para Larissa, no mesmo instante – Você vai ceder sua casa, não vai?
  • Sim! Mas, ate agora não deu nem cinco pessoas.
  • Quem já confirmou?
  • Até agora Hiago, João, Letícia e Álisson.

Por um momento, Izabela passou na cabeça todas as pessoas da sala para ver se se lembrava de algum Álisson. Aí, ela me viu e continuou:

  • OK! Pode confirmar meu nome também!
  • Tudo bem, então! – E Larissa tirou um pergaminho e uma pena de seu bolso. Virou-se para a balconista e lhe pediu um pouco de nanquim.
  • Toma, sua velha! – E a mulher educada entregou-lhe uma caneta, que Larissa teve que sair riscando pelo papel inteiro, para ver se saía alguma tinta.

E a animada conversa já continuava:

  • O pessoal vai mais é para a casa de Camila. Acho que vão ser dois ônibus.
  • Cês tão doidos? Mãe minha não vai gostar disso não! – dizia Camila, aumentando seu sotaque baiano.

‘Mãe minha’, ‘mãe minha’, ‘mãe minha’, pensava eu. Que cacofonia! Era só falar rápido que se entendia outra coisa. ‘Mãe minha’.

  • Casa de Camila, de Larissa, de quem quer que seja! Eu quero é ver o show de Paulinha Fernandes. – dizia Ítalo, eufórico.
  • Ah! O show daquela mulher deve ser tudo de bom! – dizia Brunna.
  • Sem contar que ela tem belas pernas! – dizia João Pedro, recebendo um leve tapa de Camila no braço, após o comentário.

E ele a beijou em seu rosto, como símbolo de pedido de desculpas quando Arthur aparece, entra na roda e fala para todos escutarem:

  • Eu esqueci a droga do cristalino! Como eu pude esquecê-lo?- dizia ele, indignado.
  • Toma! Te empresto o meu.

Davi foi muito legal, ao pegar a colher, tirar seu próprio olho e entregá-lo, por completo, ao jovem Arthur, que ficara muito agradecido.

  • Nós aqui, falando de Expomontes, e Arthur preocupado com o maldito cristalino.
  • Mas, eu até agora não acredito de ter me esquecido de colocar o cristalino na questão número dois da prova. E, Davi, por favor! Seu olho é muito pequeno para mim!

Enquanto Arthur devolvia o olho de Davi, a galera voltava ao interessante assunto em que estavam. Do outro lado, meio isolados, Larissa e eu apenas prestávamos atenção na conversa. João, que estava do nosso lado, sentindo seu estômago reclamar, pediu uma empada de frango à balconista. Após esperar que ela fosse ao freezer, tirar uma empada congelada, colocá-la no forno micro-ondas por breves 30 segundos e retornar o troco para uma nota de cinco, lá estava João, olhando demoradamente para a empada antes de lhe dar uma mordida.

  • Que foi, João? – perguntou Larissa.
  • Quando eu olho para essa empada, dá uma saudade da comida da mamãe!
  • João! Você mora com sua mãe! – dizia Larissa, indignada.
  • O dia que você comer essa empada, me entenderá! – dizia João triste, mesmo com um sorriso no rosto.
  • O que essa empada tem de mais? – perguntei-lhe, curioso.
  • É cara e gelada. A vendedora tem preguiça de esquentá-la. Faz e deixa no freezer por uma noite. Na manhã seguinte, ela só tira para esquentar quando alguém pede. Se você morde, vai encontrar uma enorme pedra de gelo. Mas, se você der alguma sorte, a pedra terá se descongelado e sua empada estará ensopada. Qualquer dia desses, você experimenta uma e me diz o que acha.
  • Eu ouvi isso! – disse a balconista, irritada.
  • Sua mãe nunca te disse que é feio escutar conversa alheia? – perguntou Larissa.
  • Quem é você, sua grossa? – perguntou a balconista, irritada.
  • Não te interessa! E para de escutar a conversa dos outros!

Ouvindo isso, a balconista apontou língua para a garota.

  • E toma a sua caneta! – Larissa atirava-lhe a caneta de volta, acertando-a na testa.

Para evitar qualquer briga, saímos dali. A mulher tentava pular pela janela, mas João fez o favor de empurrá-la de volta, fazendo-a cair. Quando ela estava se recuperando do tombo, outros alunos apareceram, pedindo mais lanches. Então, a balconista preferiu desistir, mas não antes de jurar vingança para o dia seguinte.

  • Quantas horas são? – Larissa me perguntava
  • 9h18.
  • Vívian! Que horas os ônibus saem? – perguntou Larissa, ao ver Vívian e Letícia se aproximarem.
  • Já estão quase saindo!
  • Vocês vão agora? Não vou ficar aqui mais não, nada pra fazer mesmo! Onde está Hiago? – continuou Larissa.
  • Deve estar beirando aquela Girafa Desmiolada.

Vívian estava xingando uma de suas colegas que tanto detestava. Para piorar, ainda brigou com Larissa na noite passada por ter passado cola a ela. Como aqui pretendemos preservar cada personagem, não diremos que ela se referia à Catarina.

  • Você não passou cola para ela de novo não, né?
  • Não! Ela é muito lerda! Não sabe nem pegar uma cola.
  • Você é muito malvada! Passa cola para ela e não para os amigos.
  • Vívian, você tem que entender que, no futuro, ela não vai ser uma boa profissional se continuar colando! Imagina só, você sendo uma grande veterinária e ela dona de um pet shop.
  • Não quero nem saber! Você tem que me passar cola.

E nós continuávamos nosso passeio. Próximo aos ônibus, lá estava Hiago abraçado à Catarina pelas costas, enquanto cheirava seu pescoço. De longe, parecia uma tentativa de beijo.

  • Hiago! – gritava Larissa – Você vai agora?
  • Vou!

Hiago e Catarina se despediram e ele veio ao nosso encontro. Estava muito feliz, até aquele momento, exatamente por ter ficado tanto tempo distante dele. Como evitá-lo era inevitável, o jeito foi me acostumar.

Mais 75 centavos. Mas, dessa vez, o ônibus estava vazio. O que me deixava mais feliz era saber que eu estava roubando o lugar de Hiago, sentando-me ao lado de Larissa. Ele teve que ficar lá, ao lado de Vívian.

Ao contrário de nossas saídas em Belo Horizonte, Larissa, em Salinas preferia sentar-se nas primeiras cadeiras, geralmente mais baixas. Na capital mineira, sempre sentávamos ao fundo, na cadeira mais alta. Talvez porque ela gostava de se sentir mais alta, ou de ver os outros de cima, nunca entendi muito bem.

Então, começamos a andar. Como acontece em todo seriado sem-graça, uma professora gordinha saiu da secretaria, correndo, tentando alcançar o ônibus, que não parava. E ela gritava para o motorista ouvir. Todos os alunos perceberam e começaram a gritar para que o motorista pudesse parar, mas em vão, já que ele usava fones de ouvido. Entretanto, para a sorte da professora gorda, o motorista percebeu pelo retrovisor algum alvoroço em seu ônibus e olhou para trás. Percebeu a professora nesse exato momento e freou. Mas, isso não impediu que a pobre senhora entortasse seu pé e caísse de cara na lama.

Pobre professora. Atrasada, desajeitada e gorda. Isso já está tão clichê nas histórias de comédia que era preciso colocá-la aqui. Os alunos a olhavam assustados, enquanto ela não conseguia se levantar. O motorista levantou-se de sua poltrona e ficou parado por um bom tempo para ver se algo acontecia. Mas, nada acontecia.

O motorista olhou para todos os alunos. Eles retribuíram. Um esperava a reação do outro, mas ninguém se mexia. Lá fora, alguns professores saíam de suas salas e via aquela cena. A professora caída nem se mexia. Os outros professores estavam boquiabertos, mas também não se mexiam. Será que a pobre professora morrera ali mesmo? E por que ninguém se mexia para ajudar a pobre senhora?

O motorista deu uma última olhada para os alunos. Foi até a janela e perguntou aos outros professores:

  • Essa mulher está bem?

Não se ouvia qualquer som. Em vez disso, os professores apenas faziam sinal indicando que não sabiam. Então, percebendo que não adiantaria, o motorista voltou-se à sua poltrona, colocou novamente os fones em seu ouvido, ligou a máquina e lá fomos nós pela estrada.

Estávamos tão empolgados de, finalmente, estarmos em curso, que até pensamos em cantar “um elefante incomoda muita gente”, mas resolvemos parar ao ver a cena se repetindo: a professora estava em pé novamente e voltava a correr atrás do ônibus. O motorista logo percebeu aquilo, por isso, pisou fundo no acelerador para deixar logo os portões do instituto. E foi assim que a professora perdera sua carona para casa.

  • Tudo bem! Vou entrar naquele que ainda está parado ali! – dizia a professora, enquanto tirava o excesso de lama da cara.

Não foi uma longa viagem e o caminho sempre era o mesmo. Por isso, aquele foi mais que tempo suficiente para eu ter tido uma boa lembrança da cidade. Salinas era sim uma cidade pequena, mas que trouxe tantas lembranças que eu seria capaz de escrever um livro sobre o que eu passei lá. Quem sabe algum dia.

Descemos no ponto. Chegamos e não eram nem 10h ainda. Quando entramos em casa, além dos cachorros que nos recebiam latindo, lá estava Paulinha varrendo a casa.

  • Que menina prendada! Está solteira? – arrisquei.
  • Pra você, não! – e ela continuou a varrer como se nada tivesse acontecido.

E aqueles cachorros pulavam. E como pulavam! Cachorros eram as únicas coisas que eu estava vendo naquele momento, depois de um fora desses.

Então, as garotas trocaram suas roupas e lá foram fazer a faxina de casa. Larissa ficou por conta de arrumar seu quarto e, para meu azar, eu precisava ajudá-la, já que era ali que se encontravam minhas malas.

Vívian foi lavar as louças. Ela me contava como gostava de ajudar as pessoas, mesmo quando não fosse necessário:

  • Sabe, Álisson. Aqui, as meninas me tratam como se fosse uma mãe! Porque quando elas estão doentes, eu que fico louca atrás de remédio, de levá-las para o hospital, eu que…
  • Você que sai entupindo as meninas de remédios, mesmo que elas só deem uma tossezinha… – interrompi.

Vívian me olhou com uma cara não muito boa.

  • Que foi? – tentei consertar – É assim que mamãe faz comigo!

Passado alguns minutos, Brunna entrou em casa. Naquele dia, o almoço foi por conta dela. Sim! O almoço foi por conta dela. Então, ela entrou, trocou de roupa, foi para a cozinha, tirou as panelas da dispensa e começou sua obra de arte.

  • Da próxima vez, você é quem fará o almoço! – dizia Paulinha, sorrindo para mim.
  • Minha cara Paulinha! – disse-lhe, colocando uma de minhas mãos em seu ombro – Você tem certeza do que está dizendo?
  • Claro que sim! Aí veremos se você está pronto para se casar!

E ela virou as costas para mim e saiu da cozinha. Eu ainda estava tentando entender o que foi aquilo depois do fora, quando ela gritou lá da sala:

  • Mas, não comigo!

‘Ah!’ – exclamei em pensamento.

Quando Brunna desligou o fogo da última panela, ela perguntou:

  • O almoço está servido. Quem será o primeiro?

Aquela mesma reação do dia anterior repetiu-se. Todos se entreolhavam, com medo. Era a primeira vez que a garota de Francisco Sá cozinhava para eles.

  • Não seja tímido, Álisson. Sirva-se! – e Brunna me entregara um prato duvidosamente limpo.

E lá estava eu me servindo. Como ninguém tinha opção, formaram uma fila atrás de mim. Mas, diferente de tantas outras filas, naquela encontrávamos apenas pessoas muito bem educadas:

  • Ah! Você pode ir na minha frente! – dizia Larissa à Tchely.
  • Que isso, amiga! Fique à vontade! – dizia Tchely, sorrindo.

Sim! Tchely novamente aparecera misteriosamente diante de nós. Talvez transportada por forças do além.

Após nos servirmos, sentamos cada um em um canto da cozinha. Eu e Larissa ladeávamos a mesa branca de plástico, Tchely sentava-se no chão, tentando empurrar os cachorros para longe dela, Vívian trouxera a cadeira que ficava em seu computador e Brunna sentava-se em um banquinho. Paulinha era a única que ficava em pé, na porta para a varanda.

Atrás de mim, uma mesa de passar roupas. Em cima da mesa, uma vasilha fechada de feijão inteiro. A vasilha estava tampada e a cor de sua tampar era cor-de-rosa. Nenhum animal foi morto para que aquele feijão pudesse ser feito. Bem, talvez algumas pragas que atacavam a colheita…

  • Gostou da minha comida? – Brunna me perguntava, após eu ter dado a primeira garfada de comida.
  • Ainda não experimentei direito! – respondi-lhe, tentando ganhar tempo.
  • E agora? – eu dei a segunda.
  • Ainda não!
  • E agora? – terceira.
  • Não!
  • E agora? – quarta.
  • Está sem sal!
  • Você quer sal, é? Você quer sal?

E lá foi Brunna nervosa para a dispensa. Pegou um pote pensando ser sal, mas era açúcar. E ela foi correndo, em câmera lenta, no rumo das panelas, jogar todo o açúcar na panela de arroz. Todos perceberam o que ela iria fazer, por isso, em uníssono e em câmera lenta, gritaram:

  • Nãããããããããããããããão!

E o herói do dia saiu correndo até Brunna, esbarrou sua grande cabeça peluda nas pernas de Brunna, fazendo o pote de açúcar voar, ainda em câmera lenta, enquanto escorregava por aquele piso vermelho fazendo seu chinelo de dedo voar por aquela cozinha. Enquanto Brunna caía, o pote de açúcar caía em minha cabeça. Tudo culpa de tio Lu.

  • É isso que dá, dizer a verdade. – Falei para a câmera que, nesse momento, já estava em velocidade normal.

Brunna, sentindo-se culpada de tudo isso, foi buscar um pano. Larissa, virou-se para mim e me disse, sussurrando:

  • Realmente! A comida não tem sal! Não vou mais me casar com ela!

Então, Brunna, após retornar, ajudou-me com o pote de açúcar, pediu-me desculpas pelo ocorrido e prometeu não mais cozinhar, enquanto eu estivesse ali. Um grande alívio para os presentes.

Foi assim que, naquele dia, o almoço conseguiu se livrar das garras do açúcar. Incidente que não pode ser evitado um mês depois, quando Paulinha jogou açúcar na batata frita no lugar do sal. Mas, isso é uma história que contarei em outra ocasião.

O sol já não estava em seu ponto mais alto. Quase todos naquela casa descansavam tranquilamente. Novamente, peguei o último livro da série Harry Potter, deitei-me no chão e comecei a lê-lo. Deitar-me naquele chão vermelho e gelado, no único lugar em que o sol entrava naquela casa era uma sensação maravilhosa. Contudo, como estava sem almofadas ou travesseiros, encontrar uma posição confortável não era nada fácil.

Vívian estava no banho. E não estava sozinha. Antes que alguém pense qualquer besteira, ela não estava com um homem. Ela estava tomando banho e dando banho na cachorra da Larissa. Antes que alguém novamente pense mal, ratificarei: era a poodle Alice.

  • Fica quieta, Alice! Deixa eu te dar um banho! Oh! Cachorra custosa!

Eu ainda não sabia se prestava atenção no livro ou na briga.

  • Alice, fica quieta! Sua cachorra desmiolada!

Eu ria. Aquilo tirou minha atenção por completo. O sono também não ajudava muito, por isso, fiquei de frente à parede e tentei tirar meu cochilo, naquele chão mesmo.

Quando já estava quase pegando num sono, Vívian aparecia na sala, segurando a cachorra e um secador, apenas enrolada na toalha. Ao ver aquele pequeno corpo estirado naquele chão, frente ao sol, logo pensou:

‘Que garoto maluco! Depois fica doente e não sabe o motivo! Eu tenho medo de ficar assim um dia. Você não tem medo também, Alice?’

Alice continuou encarando-a, como se nada tivesse acontecido.

‘Ah, é! Eu me esqueci! Eu estou apenas pensando! Alice não vai me compreender. Que burra eu sou!’

  • Au! – concordou Alice.
  • Cachorra! – resmungou Vívian.

Alice estava toda molhada. Muito engraçada para quem a via naquele estado. Vívian a levou para seu quarto e se trancaram ali. Ligou o secador e começou a sessão ‘seca cão’.

Assim como o banho, a sessão incluía altos gritos e xingamentos. A cachorra não parava quieta. Sempre que Vívian dava uma brecha, lá estava a pobre animal tentando fugir do quarto. Mas, Vívian conseguiu vencer aquela guerra.

Com toda aquela barulheira, não consegui dormir. Então, retornei ao livro. Quando estava em uma parte bastante interessante e toda a casa já estava em absoluto silêncio, eis que a porta da entrada começa a fazer um barulho estranho, como se estivessem arrombando. Era Hiago, que entrava sem qualquer cerimônia. Quando me viu, teve a mesma reação de Vívian, mas já foi logo perguntando:

  • Onde está Larissa?
  • No quarto!
  • Dormindo?
  • Não! Fazendo uma festa! – respondi-lhe, secamente.
  • Ai, que garoto grosso! Estúpido! Você não tem o que fazer não?
  • Eu tinha. Aí você apareceu!
  • Idiota! Não vou perder meu tempo com você não! Mais tarde eu volto, quando Larissa tiver acordado. Gutixau!
  • Guti quem? – Repeti para mim mesmo, ao vê-lo saindo de casa.

Então, adormeci.

Três horas depois, levantei-me, fui à cozinha e lá estava Vívian:

  • Conseguiu dormir bem?
  • Ah, mais ou menos! Mas, não queria ter dormido não! Odeio dormir à tarde.
  • Quando Larissa acordar, quero te levar para tomar o sorvete que tanto gosto, nós íamos ontem, mas, como vocês me deixaram sozinha naquela praça…
  • Ninguém mandou você ficar lá fazendo strip no meio da rua.
  • É Pole Dance!
  • Dá no mesmo!
  • Não mesmo! Mas, isso não importa agora! Vamos tomar sorvete! Mas, olha. Eu gosto muito do sorvete, mas não posso tomar muito, pois sou diabética.
  • O QUÊ?
  • Eu sou diabética. Mas, é controlada, então não faz mal tomar um pouco de açúcar de vez em quando. Quer café? Está sem açúcar.
  • Ah, obrigado! – Aceitei uma xícara e despejei um pouco de açúcar em minha xícara.
  • Alguém falou em café?

Larissa aparecera neste momento. Ela estava de pijama, com a cara amassada e com a voz mais aguda que o normal.

  • Você dormiu por dois dias e meio. – brinquei.
  • Droga! Não bati meu record! – dizia ela, entrando na brincadeira.

Nossa amizade era algo muito lindo. Fomos criados meio a ironia e sarcasmos, mas nunca nos deixamos de amar. Além disso, estarmos vivendo tão longe um do outro contribuía para que nosso amor ficasse cada vez maior, pois era assim que gostávamos de ter o outro: distante.

Eu poderia continuar a admirar aquele momento maravilhoso, mas algo me interrompeu. Novamente, Hiago estava ali. Não sei o que tanto aquele garoto fazia naquela casa.

  • Oi Larissa, Oi Vívian. Larissa, eu vim aqui mais cedo, mas esse idiota – ele apontou para mim – disse que você estava dormindo. Aí eu fui pra casa.
  • E de lá você não deveria ter saído – intrometi.
  • Cala a boca, seu imbecil! – disse ele, mais agressivo.
  • Que relação amorosa vocês dois! – comentou Vívian.
  • Ainda não entendi o porquê de vocês darem total acesso a ele. – continuei.
  • Porque você não volta para Uberrrlândia? – disse ele, imitando meu sotaque.

Admito. Meu sotaque é ligeiramente paulista. Minha tendência é forçar o R. Como o pessoal do norte de Minas tem o sotaque ligeiramente baiano, a diferença torna-se bem nítida.

  • Hiago. Tem alguém em sua casa agora? – apareceu Tchely, repentinamente, abraçando seu travesseiro.
  • Não! Você quer dormir lá? – perguntou Hiago.
  • A casa de Hiago é uma pensão? – perguntei, sem grosserias.
  • Sim! Quando aqui em casa está barulhenta demais, vamos para a casa dele, para dormir. É um silêncio tão bom! – respondeu Vívian.
  • Eu estava dormindo em meu quarto, mas acordei por causa da conversa de vocês. – disse Tchely.
  • Estamos falando tão alto assim? – perguntou Vívian.
  • Um pouquinho! – respondeu Tchely.
  • Pode ir lá! Toma minha chave! – E Hiago entregou a chave à mulher.
  • Larissa, disse ao Álisson que o levaria para tomar aquele sorvete que tanto gostamos. Você quer ir?
  • Sim! Vou só arrumar meu quarto e vamos até lá.
  • Você também vai, Hiago? – perguntou Vívian.
  • Com esse aí? – ele me olhou de cima a baixo – Não, obrigado!

Larissa foi para seu quarto. Acompanhei-a e Hiago também. Deitamos na cama dela e os dois começaram a conversar tranquilamente, quando eu voltei a intrometer.

  • Não sei como você o aguenta! – disse Hiago à Larissa.
  • Ela já se acostumou. Não vê que ela virou sua amiga? – respondi à altura.
  • Eu não estou em seu nível! – ele retrucou.
  • Precisa abaixar muito a idiotice para isso acontecer! – continuei.

Sem hesitar, ele pegou meu braço direito, virou-me contra o colchão e me prensou com seu joelho em minhas costas.

  • Repete se você for homem. – ele esbravejou.
  • A ignorância te deixou surdo? – provoquei, enquanto ele me apertava com mais força.
  • Prensar-me é muito fácil! – continuei – Eu não tenho força, sou bem magrelo. Quero ver você pegar alguém do seu tamanho.
  • Hiago, solte-o. Você está machucando. – Larissa disse, séria.
  • Então manda esse idiota parar de me implicar. – ele falou, nervoso.
  • Acostume-se comigo. Sou assim mesmo. – Dei-lhe um leve tapa nas costas e saí do quarto.
  • Depois conversamos, Larissa.

Hiagou despediu-se e foi para a casa. Ri de mim mesmo. Nem eu sabia o que estava fazendo.

Vívian apareceu na sala. Perguntou-nos se estávamos prontos. Partimos. Passeamos rápido pela cidade e já estávamos na sorveteria.

  • Hoje é por minha conta! – E Vívian nos pagou uma rodada de sorvete.

Já estava anoitecendo quando chegamos. Larissa sentia uma leve ardência em seu corpo. Hiago aparecera novamente.

  • Larissa, tenho umas laranjas lá em casa. Você quer ir para lá?
  • Sim, claro! Não estou me sentindo tão bem. Talvez um pouco de ar me deixe um pouco melhor.
  • O que você tem?
  • Acho que estou com um pouco de febre, mas vamos! Quer ir também, Álisson?
  • Ah! Tudo bem!

Dirigimo-nos para a casa de Hiago. Fomos até a varanda e nos sentamos no sobrado. O sobrado não tinha qualquer cerca, portanto era fácil alguém cair de lá e se esborrachar no chão a mais de cinco metros. Sentei-me no meio dos dois.

Hiago nos trouxera um pequeno balde cheio de laranja e duas facas. Cheguei a pensar que aquelas facas seriam úteis para que ele pudesse me assassinar, mas, ao olhar para baixo, percebi que aquela não seria a única forma.

Larissa não sabia descascar uma laranja, por isso fazíamos torcida para ver se ela conseguia tal ato. Entre uma ferida e outra na pobre fruta, ela nos contava:

  • Certa vez, falei para as meninas que não sabia descascar uma laranja. Brunna olhou para mim e disse bem assim: “Está na hora de você aprender”. Sempre tive vontade de responder coisas como: “É que não fico perdendo tempo com coisas inúteis como essa, fico tentando aprender coisas que eu vou precisar mesmo, como bioquímica”.

Rimos. Larissa não perdia o sensor de humor, mesmo no estado em que ela se encontrava. Sua febre estava cada vez mais alta e seu nariz já começava a escorrer.

  • Brunna é muito burra. Ela estava mal em bioquímica e eu me ofereci para ajudá-la, mesmo que não precisasse de nota. Então, Flaviana disse a ela que precisava muito estudar biofísica e ela preferiu ajudá-la. Aconteceu que Flaviana desistiu de estudar e Brunna não estudou nem uma e nem outra. Resultado: Se ferrou nas duas! Tenho vontade de dizer a ela: “Vai, trouxa! Quem mandou?”.
  • Um dia ela aprende! – comentou Hiago.
  • E mesmo assim você se compromete a ajudá-la? – perguntei-lhe.
  • É porque eu sou trouxa! – respondeu Larissa.

Eu estava terminando de descascar minha laranja. Como aquela era uma faca bem melhor que a outra, era a mais desejada. Por isso, Hiago me pediu de volta.

  • Pra quê? – perguntei-lhe.
  • Vou matar você! – ele respondeu, sem mudar seu semblante.
  • Você é muito burro, Hiago! É mais fácil você me jogar daqui de cima. Vou morrer e você ainda pode fazer parecer um acidente.
  • Olha! Sabe que é uma boa ideia? Você é bem inteligente! Quer que eu te empurre agora? – perguntou-me.
  • Não! Agora não! Deu muito trabalho descascar essa laranja, então me deixe terminá-la primeiro!
  • Tudo bem, mas não demore.

Parecia uma trégua entre nós dois. Talvez fosse o efeito da Laranja.

  • Você parece ser legal! – disse-me Hiago.
  • É! Só pareço! Não se engane muito com isso. – Respondi-lhe.
  • Larissa, você quer dormir aqui em casa hoje? – Hiago perguntou.
  • Pode ser. Só vou para casa tomar banho, vestir uma roupa, pegar minhas cobertas e travesseiros e subo para cá.
  • Combinado então!
  • Você vai dormir aqui também, Álisson? – Larissa me perguntou.
  • Ah… – resmunguei.
  • Se não quiser, não precisa. Você dorme lá com os cachorros. – continuou Larissa.
  • Pensando bem… Como você está se sentindo, Larissa?
  • Nada bem.
  • Quer que eu te ligue para ver se você melhora? – perguntou Hiago.

‘Ligar?’ – pensei.

  • Pode ser! – respondeu Larissa, rindo.

Então, Hiago pegou seu celular e começou a discar para o número. Uma música japonesa começou a tocar.

  • Alô? – disse Larissa atendendo.
  • Oi, Larissa! Aqui é o Hiago. Tudo bem?
  • Tudo bem e você? – Larissa continuou.
  • Tudo bem! Onde você está? – perguntou Hiago.
  • Ah, estou aqui numa sacada, de frente para a minha casa. E você?
  • Ah, estou aqui na sacada da minha casa, mas não estou vendo você. Acena.
  • Acenei. Você viu? – perguntou Larissa.
  • Não! Estou acenando de volta. Viu? – perguntou Hiago.
  • Também não!
  • Quer vir aqui?
  • Sim, claro! Vou desligar o telefone e já estarei aí em menos de cinco segundos. Até mais, beijos!
  • Beijos! Ah, oi Larissa! Demorou! – disse Hiago, após desligar seu telefone.
  • Esse trânsito está uma loucura, menino!
  • O que vocês estão fazendo aí?

Era Tchely. Surgira do portão de casa, olhou para nosso rumo e nos viu ali na sacada. Hiago aproximou-se mais da beirada da sacada e gritou:

  • Estamos chupando laranja!

Percebi que Hiago estava bem na ponta da sacada. Meu coração gelou. Tentei puxá-lo para trás, mas como o garoto estava muito pesado, não consegui.

  • Quer vir até aqui nos acompanhar? – perguntou Hiago.
  • Hiago! – continuei puxando – Você vai cair desse jeito!
  • Não, obrigada! – continuou Tchely.
  • Tchely, pegue minha câmera e tire uma foto nossa daqui de cima! – gritei.

Tchely entrou. Quando voltou, segurava uma câmera semiprofissional. Bateu três fotos nossas:

  • Cuidado aí em cima! – e voltou para casa.
  • Com o quê? – Hiago questionava, enquanto um homem caía do andar de cima.
  • Hiago, vou voltar. Não estou me sentindo muito bem. – disse Larissa, colocando a mão na testa.

Ajudamos Larissa a voltar para o apartamento e, de lá, fomos para casa. Hiago ainda demorou alguns minutos, pois tomaria um banho antes de descer. Em casa, Vívian cozinhou uma sopa para a garota.

  • Que mãezona você arrumou, hein? – comentei à Larissa.

Mas, isso não impediu que ela regurgitasse a laranja dentro do lixo.

  • Vomita mesmo, minha filha! Que isso vai te fazer bem!

Quando Hiago apareceu, foi direto ao quarto de Larissa e deitou em sua cama. Para implicar, deitei-me na mesma cama e o empurrei para o colchão, onde Larissa estava deitada. Ele logo foi tirando sarro:

  • Pelo menos agora estou do lado de Larissa, bobo.

Então, ele pegou o lixo e viu uma bela imagem.

  • Credo! O que é isso? – Perguntou incrédulo.
  • Ela vomitou! – respondi-lhe.

Para mostrar seu bom estado, Larissa colocou em seu mensageiro instantâneo a seguinte mensagem pessoal: ‘Nada melhor que ficar doente em véspera de Expomontes. Uhul!’. Hiago aproveitou a ocasião para responder a todos que perguntavam que ela estava grávida. E de mim. Tinha pena da pobre criança.

Distante, a campainha tocava. Uma, duas, três vezes. Vívian logo desconfiou:

  • Álisson, acho que alguém está tentando tocar nossa campainha. Vai lá ver para mim, por favor.

Fui lá pra fora. Um pouco distante, um garoto de boné sentava-se na calçada. Olhei fixo para ver se me lembrava dele. Assim que me viu, ele foi logo perguntando:

  • A casa de Larissa é aí?

Era Erick. Estivemos juntos noite passada, mas eu não me recordava de sua fisionomia. Para não parecer mal-educado, pedi-lhe que entrasse.

  • Larissa não está muito bem. Está deitada.
  • Larissa, o que você tem? – Erick foi logo perguntando ao vê-la deitada.
  • Febre, dor no corpo, vômito. Acho que é virose, “doença de médico”.
  • Deu algum remédio para ela tomar? – perguntou Erick.
  • Não temos nada aqui! Vou levá-la amanhã para a policlínica! – disse Vívian.
  • Ou a uma funerária. Tem tantas aqui! – disse-lhes.
  • É! Parece ser uma boa ideia! – disse Vívian, pensativa.
  • Vai para a aula amanhã? – Erick perguntou à Larissa. – Sabe que tem prova de Cris, né?
  • Acho que vou pedir a ela que me dê uma prova semana que vem, caso não melhore. Não estudei nada! – disse Larissa.
  • Larissa, João está online! Quer que eu peça a ele para fazer seu toolbox?
  • Quero.

“Claro que posso fazer pra ela, Vívian. Assim que terminar darei um pulinho aí e entrego!” – respondeu João, por mensageiro.

  • Enquanto isso, vocês não querem ir buscar uns pães para fazermos cachorro quente? O Álisson ainda não conhece meu cachorro quente democrático!

Topamos ir. Erick, Hiago e eu caminhávamos pela cidade, passávamos por passarelas e rotatórias. Mesmo que eu não tivesse andado muito por aquela cidade, o caminho percorrido era quase sempre o mesmo.

  • Na minha terrinha, dez horas da noite a cidade já está dormindo. Você não encontra ninguém na rua depois disso. E aqui?
  • Seis! – disse Erick, brincando.
  • Olha para essa passarela! Essa é a passarela de desfile de modas. O pessoal compra uma roupa, veste e passa por essa passarela a noite para ficar se exibindo. – disse Hiago.
  • E quando será nossa vez? – perguntei.

Após uma longa caminhada de quase cinco minutos, chegamos à padaria. Entramos e fomos todos educados:

  • Boa noite!
  • Boa noite!
  • Boa noite!
  • Boa noite! – respondeu a caixa.
  • Boa noite! – respondeu o dono da padaria.
  • Boa noite! O que vocês vão querer? – perguntou a padeira.
  • Cachorro quente a um real e cinquenta! – exclamei.
  • Quantos pães vamos pedir? – perguntou Hiago.
  • Vívian te deu quanto? Cinco reais? Compra tudo em pão! – brinquei.
  • Cinco reais de pão, por favor! – pediu Hiago.
  • Ele está de brincadeira, não está? – perguntei a Erick.
  • Homem! A mulher vai te fritar vivo se você gastar tudo em pão! – disse-lhe Erick.
  • Mata nada! Pode encher a sacola.
  • Ele é sempre assim? – perguntei a Erick, mas o garoto só riu. – Você é de onde?
  • Ouro Preto.
  • Sério? Tenho vontade de conhecer. Qualquer dia desses apareço na sua casa e você me mostra a cidade por completo.
  • Pode ir à vontade.
  • Caramba, aqui também tem maracujá nativo! – exclamei novamente.
  • Obrigado, senhora! Vamos embora, pessoal!

E lá fomos nós. Hiago carregava um saco lotado de pães.

  • Estou te falando que a mulher vai matar você!
  • Vai nada!

Seguimos para casa. No caminho, percebia que, dificilmente os carros eram de Salinas.

  • Olha! Esse carro é de Belo Horizonte! – exclamei.
  • Esse não é o carro daquele nosso professor? – Erick perguntou a Hiago.
  • Esse mesmo. – Hiago respondeu.
  • Ah, isso explica! Olha só, esse também é de Belo Horizonte! – continuei.
  • Esse também é de um professor nosso.
  • Ah! Você está de brincadeira comigo!

Era difícil de acreditar que os dois carros da capital eram de dois professores deles. Tão difícil quanto acreditar que, nesse momento, um cara descia rolando a tal passarela da moda.

Em casa, como previsto, Vívian queria matar Hiago por seu exagero. Para compensar, Erick assumiu o gasto por completo.

  • Aqui, Vívian! Pode deixar que o gasto fica por minha conta.
  • Não, Erick! Você é nosso convidado.
  • Sem problemas, mulher! Pode deixar que eu pago.

Enquanto Vívian aceitava o dinheiro de Erick, eu provava o tal cachorro quente democrático.

  • Como aqui Larissa, Hiago e Letícia são vegetarianos, temos que fazer essas comidas diferentes para poder agradar todo mundo. – explicou Vívian.

Era uma mistura de salsicha e soja, para agradar carnívoros e vegetarianos. Um gosto um tanto exótico, mas que valia a pena experimentar.

Já estava bem tarde e João ainda não havia aparecido. Ele havia se enrolado com o resumo da prova que estava fazendo.

“Como Larissa está?” – perguntava João.

“Em estado terminal!” – respondeu Vívian.

“Se ela morrer, eu a mato. Esse toolbox está me dando muito trabalho!” – continuou João.

  • Larissa, João disse para você não morrer agora, pois ele está fazendo seu resumo. – gritou Vívian.
  • Ok, então! Vou deixar para amanhã! – gritou Larissa.

“Vívian, tem algum problema se eu entregar uma xérox ao invés do original?” – perguntou João.

“Acho que não tem problema não. Cris é de boa, se ela não aceitar, vamos amarrá-la e tudo fica resolvido!”. – disse Vívian, que repetiu a conversa para Larissa escutar.

  • Amarrem-me com ela, por favor! – gritou Larissa.
  • Vamos te amarrar e te jogar num rio! – gritou Vívian.
  • Querem ajuda? – perguntei.

“Vívian, diga à Larissa que está muito tarde. Levarei os resumos amanhã, se ela não se importar. Enquanto isso, vou tentar terminar aqui. Até amanhã!”

E eles se despediram. Vívian contou o caso de João à Larissa, para que ela pudesse se tranquilizar.

Como estava tarde, Erick e Hiago se despediram de nós. Larissa preferiu não dormir na casa de Hiago por razões óbvias. Deixariam para outro dia. Respirei mais aliviado por não ter que aturá-lo por mais algumas horas, mesmo que ambos estivessem dormindo. Com isso, encerramos a noite. Amanhã seria um dia mais agitado.

Mas, o que havia acontecido com a gata xadrez do começo do capítulo? Finalmente encontrara seu caminho de casa, pegando carona com o mesmo motoqueiro. Para seus filhotes, levou um pedaço de pão amanhecido e tiveram um delicioso jantar.

Mais ou Menos Salinas (2)

Capítulo 2: Próxima parada, Salinas

  • Alô, Álisson?
  • Oi, Larissa, o que você me conta?
  • Que horas você vai chegar aqui?
  • Acho que por volta de umas dez horas.
  • Dez horas? Tão cedo assim? Onde você está?
  • Já peguei o ônibus para Salinas, estou na estrada.
  • Mas, ainda são 6h30! Você disse que chegaria depois das sete, por isso que eu nem reservei táxi para você!
  • Pois, é! Pelos meus cálculos eu chegaria depois das sete mesmo. Tomei por base a última viagem. Mas, acho que o ônibus chegou um pouco mais cedo.
  • Ah, sim! Tudo bem! Quando você chegar aqui, me dê um toque que vou pra rodoviária te buscar. Vou pro instituto, beijos.
  • Beijos.

E foi assim a nossa primeira conversa do dia, a poucas horas de nos encontrarmos. Como já não conseguia mais dormir, levando em consideração o transporte, as estradas e o sol em minha cara, voltei a jogar meu DS. A mulher ao meu lado também tentava tirar um cochilo, visivelmente em vão.

  • Você é de Salinas? – A mulher me perguntou, após perceber que não pegaria tão rápido num sono.

Fechei o videogame e o guardei no bolso. Em outras ocasiões, continuaria jogando.

  • Não! Moro em uma cidade próxima a Uberlândia. Vou pra Salinas passar as férias.
  • Ah! Você tem parentes por lá?

“Parentes por lá”? Por que todo mundo me pergunta isso? Será que você só viaja se tiver parentes morando onde deseja ir?

  • Não, não! Tenho uma amiga que mora lá e eu vou passar as férias com ela. E você? – continuei, após ouvir dela um sonoro “Ah!” – É de Salinas?
  • Não! Sou de Belo Horizonte. Passei em um concurso federal e estou trabalhando num instituto, na parte administrativa.
  • Ah, você trabalha no “I-Efe-ne-me-gê”? – Falei cada sílaba pausadamente.
  • Sim e você? – dizia ela sorrindo.
  • Não, eu não! – retribui o sorriso e depois fechei a cara.

A conversa parou por aí mesmo. Duas horas depois, recebo uma mensagem de Larissa: “Se você chegar e eu não estiver na rodoviária, espera um pouco porque acabei de achar um cachorro e estou na luta para levá-lo para casa”.

Larissa e alguns de seus amigos de faculdade encontraram um labrador preto em frente à companhia de água, no centro da cidade, e resolveram levá-lo. Como eles não estavam próximos de casa, Hiago, um dos que a acompanhava, pediu a um carroceiro, próximo a eles, que o ajudassem.

Enquanto eles lutavam para levar o cachorro, que também era cego, a minha viagem chegava ao fim. Os morros de Salinas já eram visíveis, assim como os prédios, o mato e a terra. Também era bem notável que a cidade carregava divulgação de suas cachaças para todos os lados.

  • Salinas? – perguntei à mulher.
  • Sim! Chegamos!

Entramos na rodoviária. O ônibus desligara os motores. Finalmente, aquele tedioso caminho chegara ao fim. Desembarquei. Agora, eu poderia pegar outro ônibus e voltar à minha terra. Pelo menos foi o que eu tentei, até descobrir que os guichês estavam fechados…

Desci do ônibus, peguei minhas malas, sentei-me nas cadeiras velhas e quebradas e esperei. Esperei, esperei e esperei. E como esperei. Já não estava mais aguentando, então resolvi tomar uma atitude: resolvi esperar mais algum tempo. Após quase uma hora de espera, ligo para a garota de um metro e meio de altura (ou pouco menos que isso):

  • Larissa, você já está chegando?
  • Você está vendo um posto verde?

Andei um pouco pela rodoviária. Não encontrei o tal ponto de referência de forma alguma.

  • Não, onde?
  • Dá uma olhada pelo rumo da autoestrada que você encontra.

Olhei e avistei o posto. Próximo, uma bela garota ruiva, de sorriso estonteante, trajada de camisa preta e uma calça jeans, vinha à minha direção. Logo atrás, vinha Larissa.

Larissa começou a reparar na mulher, não olhou por onde andava, tropeçou em uma pedra e caiu num buraco. Na verdade, nada disso acontecera, então, apaguem o que vocês leram, inclusive sobre a ruiva.

De longe, respondi à Larissa com um sorriso. Ela correspondeu. Após longos três meses de espera, finalmente nos reencontrávamos. Depois de nos abraçarmos, fiz o que todo bom amigo faz nessas horas: entreguei uma das malas para ela carregar.

Há mais de cinco anos, eu e Larissa nos conhecemos em um fórum de RPG. A partir daí, nossa amizade foi crescendo, passando por boas histórias, mesmo que virtuais. No início deste ano, ela veio à minha formatura, onde nos encontramos pela primeira vez. Depois dessa, tivemos mais dois encontros: um em Montes Claros e outro em Belo Horizonte que, indo embora desse último, ela pediu para que fosse à terra da cachaça para conhecer a cidade e seus (completamente normais) coleguinhas de faculdade. E lá estava eu.

  • Conseguiu dormir durante a viagem? – Perguntou-me, sabendo que isso era quase impossível para mim.
  • Apenas de Pirapora a Montes Claros. Havia uma mulher sentada ao meu lado com um chulé insuportável.
  • Pirapora a Montes Claros? – perguntou ela, ignorando o resto da frase – Não dormiu quase nada!
  • Cerca de duas horas.
  • Olha só! Vívian pediu desculpas. Ela queria muito vir te receber na rodoviária, mas ela precisava fazer almoço. Sabe como é! Ninguém vive se não comer.
  • Pois é! Ô vida triste!

E ficamos lá parados por cinco minutos tentando imaginar o quão ruim seriam nossas vidas sem o tal almoço.

  • Da próxima vez que você vier, vá para minha casa de táxi. Não tenho obrigação de te buscar na rodoviária!
  • Gracinha você! – dizia eu, enquanto apertava suas bochechas.

E foi assim o passeio. Descida, rotatória, subida. Paramos na Rua Belo Horizonte. Sim! Larissa não largava Belo Horizonte nem quando estava a 600 km de distância.

Próximos ao nosso destino, Larissa apontou para um prédio, onde havia uma instalação da Previdência Social.

  • Quando você precisar de um ponto de referência para minha casa, é só se lembrar da “Previdência Social”.

Essa informação me foi muito útil mais tarde. Logo saberão o motivo.

  • E aquela ali, – dizia, apontando para um apartamento – é a casa de Hiago.
  • What? – perguntei assustado, parando repentinamente, derrubando a única mala que eu carregava em punho – ele mora tão perto assim?
  • Pra você ver! Mas, nem tem tanta diferença, ele vem direto aqui em casa. Vou chamá-lo. HIAGO!
  • NÃO!

Era tarde demais. Larissa já proferira aquele nome em vão. E eu pensei que conseguiria me esconder dele naquelas duas semanas que me acomodaria por lá. Pois é! Meu plano infalível estava completamente desmoronado, graças àquela ruiva maligna, que agora ria maleficamente em seus pensamentos.

Foi nesse momento que ele apareceu, ali na sacada. Só não o descrevo aqui para não apanhar depois. Então, tentem usar a imaginação de vocês.

  • Olha só quem chegou! – gritava Larissa, apontando para mim.

Acenei de longe, para não parecer mal-educado. Ele retribuiu e logo disse:

  • Agora mesmo eu desço.
  • Desce depois, pra vocês darem uns beijinhos.

Enquanto Larissa dizia a última frase com um sorriso sacana no rosto, eu fazia um sinal de negativo com as mãos, esperando que ele ficasse ali por 15 dias, trancado em casa. Quem sabe uma simpatia resolvesse.

Há três meses, enquanto eu estava em Belo Horizonte, Larissa conversava com Hiago via internet. Sabendo de algumas histórias que Larissa havia me contado sobre ele, resolvi pegar em seu pé e incomodá-lo de tal forma que ele se irritasse comigo. E o plano deu certo. Tanto que, na época de festa junina em Salinas, quando conversamos mais uma vez, ele confirmou o quanto eu era insuportável. Tanto que, ao me ver, ele desejava meu retorno. Algo recíproco.

Entramos na república, lar de Larissa, Vívian, Tchely, Brunna e Paula, três caninos, incluindo o novo labrador, e uma galera que sempre estava por lá. Hoje, reuniam-se para fazer mais um daqueles trabalhos tediosos e estudar para a prova do dia seguinte.

Como me sentia nervoso com apresentações, ainda mais com tanta gente, respirei fundo, larguei minhas malas no chão, caminhei à pessoa mais próxima de mim e esperei as apresentações de Larissa.

  • Pessoal! Este é o Álisson, Álisson este é o pessoal. Alguém quer chá?  Não? Ok! Estarei na cozinha quando precisarem de mim. Álisson, meu quarto é aqui, você pode deixar suas malas jogadas em qualquer lugar, mas não as deixe bagunçada. Obrigada e tenha um bom dia.

E fui eu lá cumprimentar as tantas pessoas que estavam ali presente. Era incrível como todos ali sabiam quem eu era e como eu sabia quem eram todos por ali, graças à própria garota que me recebera na rodoviária.

  • Álisson, Vívian está aqui na cozinha. Ela quer muito te conhecer.

E lá fui, para a cozinha, após deixar minhas malas no quarto para conhecer Vívian.

A minha história com essa mulher começou também não há muito tempo. A primeira vez que Larissa a mencionou, estávamos em Belo Horizonte, andando com sua prima Amanda e seu irmão Daniel, depois de ter tomado um delicioso milk shake. Larissa mencionara que uma de suas amigas fazia depilações.

Num belo dia, enquanto seu marido estava folgadão, deitado no sofá, sem quaisquer vestes e roncando alto, Vívian se aproveitara do momento para desenhar um nobre elefantinho em um lugar impróprio, que não posso mencionar, por haver tantas crianças inocentes que podem estar lendo agora. Ainda não contente, ela pegou seu celular, em cima de suas roupas ainda não passadas, ativou a câmera e… Click!

No dia seguinte, enquanto estavam todos falando sobre a aula prática de castração de porcos, Vívian aparece, alegre e sorridente, pulando num pé só e com seu celular na mão, anunciando para todos:

  • Gente! Olha a mensagem bonita que eu recebi!

E lá estavam todos, admirados pelo elefantinho de estimação de Vívian, segundos antes de o aparelho aparecer caído na lama, misteriosamente.

Agora, estava eu, abraçado àquela mulher, que, dias antes, me prometera fazer o mesmo.

  • Ah! Que felicidade! Finalmente estou te conhecendo! Nossa! Pensei que fosse mais alto!

Não aguentei aquela frase e a soltei. “Mais alto?”, pensava eu. Por que todo mundo pensa que sou mais alto? Larissa me falara o mesmo quando me viu pela primeira vez. Que absurdo!

  • Eu estava louquinha pra você chegar, para fazermos sexo grupal. Vamos fazer muito sexo, eu só quero sexo, nada mais que sexo.

Eu sabia que não deveria levar a sério. Mesmo assim, fiquei vermelho, ainda não habituado àquele tipo de conversa. Apenas retribuí com um sorriso. Para quebrar o gelo, ela continuou:

  • Fez boa viagem? Conseguiu dormir? – perguntou-me Vívian.
  • Não! Não consigo dormir. Há dois dias não durmo direito. Ontem estava em Uberlândia.
  • Se quiser, temos camas, temos chuveiro, pode ficar a vontade.
  • Não, obrigado! Vou deixar pra mais tarde.
  • Ah, sim! Pois, agora eu sei que você prefere fazer sexo. Também podemos fazer isso agora!

Que loucura! Sério mesmo que eu estava ouvindo aquilo?

Larissa me levou para a varanda para me mostrar o cachorro cego. Lulu, ou tio Lu, homenagem ao professor deficiente de um olho só, era seu nome. O cachorro era preto, magrinho, com quase um ano de idade e fazia muita merda, literalmente.

  • Ah, Álisson! Acabei de me lembrar! Tem umas bolachinhas aqui em cima da geladeira, da semana passada. Eu acho que você está com fome, então, toma!

Vívian me entregara um pote de bolachinhas amanhecidas. Estava feliz comendo, quando a campainha tocou. Era Letícia. Após ter entrado, ela se dirigiu à cozinha, onde me viu e me abraçou. Vívian avisara a ela que eu estava comendo suas bolachas.

  • Vai embora logo, Álisson. Pois, com você aqui eu não sou mais visita e vou acabar ficando sem minhas bolachinhas da semana passada! – dizia Letícia que, como todo mundo, parecia ter criado intimidade comigo antes mesmo de eu ter pisado a terra da cachaça.

Em relação à Letícia, natural daquela cidade mesmo, diferente da maioria da turma, a única vez que tenho conhecimento de algo sobre ela, foi quando Larissa me mostrara uma foto da turma e seu rosto alegre me chamara atenção. Era o rosto de uma garota meiga que parecia ser bastante brincalhona. Mas, não foi essa impressão que tive mais tarde.

E lá foi ela, se dirigir ao resto da turma que continuava a fazer trabalhos. Entre esse pessoal, estava Paula. Ela era a única perdida por ali, antes da minha chegada, pois, em meio a tantos veterinários, Paulinha, para os íntimos e folgados, como eu, estudava Matemática. Paula era da mesma cidade de Brunna, Francisco Sá, situada entre Salinas e Montes Claros. Ela adorava dizer que um dia ficaria louca, como o resto do pessoal. E, pelo visto, já surtia efeito.

Enquanto isso, na cozinha, Larissa e Vívian colocavam num pratinho velho, alguma comida da noite passada. Eles estavam alimentando uma cadelinha que vivia por ali, carinhosamente apelidada de Sol. Tenho pensado se esse nome foi dado devido à cor meio amarelada de seus pelos.

  • Venha, Álisson! Vamos alimentar Sol.

E para lá fomos, com um prato de comida. Lá fora, Hiago, olhava para a cadela. Para não parecer mal-educado, cumprimentei-o, sendo retribuído. Enquanto isso, Larissa alimentava o pobre animal.

  • Não, Larissa! O animal que você deve alimentar é o outro. Hiago já deve ter almoçado!
  • Ah, desculpe! – Larissa parou bem na hora que estava quase colocando uma colher na boca de Hiago, sem graça.

Enquanto a cadela aguardava por sua refeição, fui tentando puxar assunto com o garoto:

  • O cachorro é seu?
  • Não é bem meu, nem de Larissa. Achamos na rua. Estamos cuidando dela.

Algo que não entendi até hoje. Se eles estavam cuidando dela, por que não levavam para a casa de ninguém? Por que o pobre animal ainda dormia na rua? E, novamente, eu não estava falando de Hiago!

  • Você vai lá pra casa? – perguntou Larissa a Hiago.
  • Não, eu não vou! Ficarei duas semanas preso em casa. Não me visite, não me incomode, não ligue para mim neste período. – disse eu, tentando imitar a voz dele.
  • Sim, vou! Só vou terminar de preparar meu feijão e já estou indo para lá! – Respondeu Hiago, olhando-me com fervor nos olhos.

Fomos embora. Para minha infelicidade, ele estaria ali dentro de poucos minutos. Entramos, quando Vívian anunciara para todos que o almoço já estava pronto. Com isso, o pessoal que não morava ali desapareceu rapidamente. Os outros olhavam-na com cara de terror. Vívian, com um sorriso malvado, esfregava as mãos. Eu ainda não estava entendendo a situação, quando Vívian olhou bem nos meus olhos e anunciou:

  • Hoje, você provará da minha comida! – e soltou uma risada maléfica, fazendo os cachorros saíram correndo.

Vívian foi até o quarto de Brunna e depois de Tchely, chamá-las, pois ambas dormiam sossegadamente. Tchely, uma mulher ruiva e já casada, era de Belo Horizonte e adorava um soninho. Não importava se fosse de manhã, a tarde, depois do banho ou quando todos estivessem se divertindo em algum lugar, se pudesse tirar uma soneca, estaria perfeito para ela.

Minutos depois, estavam todos comendo, na cozinha, ladeado por Alice, um poodle, e Champignon, sabe-se lá qual sua raça.

Era a vez de tio Lú. Ele recebeu uma pasta amarela, com algo preto encrustado, como se fossem percevejos. Após seu almoço, Vívian começou a preparar o banho do canino. Nesse momento, a campainha soava. Era Hiago.

E lá foram os dois banhar o animal. Aproveitei para tirar algumas fotos, inclusive uma em que Vívian subia as calças de Hiago, que não paravam de cair em momento algum, mostrando a todos uma cena bastante desagradável. Quando fui reclamar, ele ainda me soltou algo do tipo:

  • Se não quiser ver estrelas, não olhe para o céu!

À tarde, o pessoal retornara. Alguns entravam com medo, perguntando se todos já haviam almoçado.

Enquanto as oito pessoas se acomodavam em uma pequena mesa branca de plástico para apenas quatro, Vivian, inconformada, vai até mim, após ouvir o toque de celular de Larissa:

  • Você já ouviu o toquinho de celular da Larissa? Umas músicas malucas que ninguém entende nada, coisa de gente louca.
  • Rá! Sei bem do que você está falando, quer ver? Larissa – virei-me a ela – dá um toque no meu celular.

E a música Best Wishes, abertura japonesa de Pokémon da 14ª temporada, começou a soar de meu celular. Comecei a dançar ali mesmo.

  • Ah, você também? – Indignou-se Vívian – tenho medo de que essa loucura seja contagiosa.
  • Eu te falei, Vívian! Isso é completamente normal! – dizia Larissa, com um sorrisinho no rosto.

E lá foi o pessoal estudar. Como eu ainda não estava enturmado, deitei-me na cama de Larissa e fui ler um pouco. O livro que estava lendo era o último da saga Harry Potter, pois o filme já estava com dias contados para a estreia e eu não queria ir vê-lo antes de terminar a leitura.

Quando o sol já estava próximo de se deitar, pedi a Larissa e Vívian que me mostrassem a cidade. E lá fomos nós conhecer alguma coisa. Vívian nos prometera uma casquinha de sorvete no final do trajeto, o que deixou as duas crianças que a acompanhavam felizes. Sim, eram Larissa e esse que vos escreve.

Andamos um pouco e já estávamos bem no centro da cidade. Em frente a uma escola, onde a rua era dividia por um canteiro, lá estava uma mina de ouro para Vívian: Escondida entre algumas pedras, um daqueles remédios novos em folha para o ouvido. Animada, ela grita:

  • Ah! Era isso mesmo que eu estava precisando! Vou levar para casa!
  • Vívian, você é maluca! Não sabe o que isso pode ter. – disse-lhe.
  • Vou olhar mais. Talvez encontre outra coisa. – e ela procurou, sem me dar ouvidos.
  • Ela é sempre louca desse jeito, Larissa? – perguntei.
  • Às vezes ela age pior.

Sim! Essa é Vívian. Muitos de vocês devem estar assustados, como eu, mas não se preocupem. No fundo, no fundo, no fundo, bem lá no fundo, talvez, deva existir uma pessoa sã. Ou não.

Para confirmar o que eu acabei de dizer, quando estávamos em frente à Policlínica Salinense, Vívian fez questão de parar e dizer:

  • Ah! Eu amo tanto esse lugar. Eu amo tanto as pessoas que estão aqui. Elas são tão legais, gosto muito deles. E eles gostam muito de mim. Sou tão feliz com todos eles.

E ficou lá sonhando acordada. Fiquei tentando imaginar se aquilo era realmente uma policlínica, ou um sanatório camuflado, depois de tais palavras. Tive vontade de entrar e conhecer. Como meu cérebro já estava a ponto de “fritar”, parei de pensar.

Continuamos a andar. Se estivéssemos no mar, continuaríamos a nadar. Um fato curioso da cidade é a quantidade de funerárias. Vívian chegou a chamar minha atenção devido a esse fato:

  • Tá vendo aquela funerária, moço? Ajudei a levantar! Foi um tempo de aflição, eram quatro condução, duas pra ir, duas pra voltar…
  • Mas, Salinas nem tem condução, moça! – falei sem entender a piadinha.
  • Não, burro! Idiota! Retardado! Estou cantando uma música de Zé Ramalho.
  • Ok! Já entendi, Zé Ramalho! Mas, agora pode me dizer o que tem aquela funerária? – dizia eu à Vívian, depois de ter ouvido seu cover.

Vívian parou por um momento, foi até mim, diminuindo o tom de voz e me disse, com uma cara muito séria e de olhos bem arregalados:

  • Olhe bem para o banner. Raciocina comigo: Funerária, pessoas mortas. No banner, uma família feliz, que deve representar os donos da funerária. Logo, eles ficam felizes quando alguém morre!
  • Muito bom, Vívian! Estou admirado com sua linha de raciocínio!
  • Ah, obrigada! – disse ela muito sorridente – Isso é o resultado dos testes de CSI!
  • Deve ter tomado bomba! – sussurrei.

Depois, fomos à praça da igreja. Lá foi o local das tendas de festas juninas, realizadas há um mês. Lamentei-me por não ter ido.

  • Enquanto estávamos aqui nos divertindo, você preferiu ficar em casa. E por quê? Agora fica aí arrependido de não ter vindo! – Esbravejava Larissa.

Depois, fomos até a Praça do Banco do Brasil. Em volta, uma das agências do Sicoob Credinor. Fiquei feliz, pois era a cooperativa que eu trabalhava e exclamei algo a respeito. Larissa já foi logo soltando:

  • Isso que é amor pelo serviço.

Quando estávamos dando uma volta pela praça, Vívian pediu que parássemos em frente a uma árvore:

  • Aqui estamos, Vívian. O que você pretende agora?
  • Vou dar uma amostra pole dance para vocês.

E lá foi ela. Perna esquerda no chão, perna direita no galho da esquerda, braço direito no topo da árvore, braço esquerdo na placa do lado, cabeça entre dois galhos estreitos, barriga virada para o chão…

  • Que contorcionismo! – exclamei.
  • Vamos embora daqui de fininho. Dá tempo de nos salvarmos. – sussurrou Larissa.

E lá fomos nós, voltando para casa, enquanto Vívian continuava sua dança, até que:

  • Ué? Cadê todo mundo? Ah! Deve ter ido comprar sorvete! – e lá foi ela continuar seu espetáculo.

Mais tarde, quando já estávamos em casa e depois de Vívian ter brigado por não termos esperado, a campainha tocava. Letícia, Erick e João eram alguns nomes que me recordo agora. Erick morava em Ouro Preto. João era de Salinas mesmo. Já conhecia muito bem o instituto, lugar onde estudara desde que era pequeno. Hoje, com 19 anos, João continuava pequeno. E ficou assim pelo resto de sua vida. Mas, a história não acabava por aqui.

O trabalho a ser desenvolvido naquela noite exigia que se fizesse a representação das glândulas mamárias bovinas de uma vaca. Quero deixar bem claro que vou deixar a frase escrita dessa maneira para que pessoas leigas como eu possa entender, então, por favor, não me corrijam. A representação poderia ser feito em cartolina, papel A4, massa de pão ou hieróglifos. Um grupo escolheu o papel e o outro a massa de pão. E o pão nos lembrou de que estávamos com fome. Eis então que um deles grita:

  • Vamos ao Farley!

Em Salinas, não havia muitos lugares de reuniões juvenis. Farley era um dos que o pessoal conhecia. Lá, eram servidos sanduíches de vários recheios e sucos de apenas três sabores. Como eu estava louco para conhecer, fui. Éramos cinco: Paula, Erick, Vívian, Larissa e eu. Chegamos, sentamo-nos à única mesa que havia do lado de fora e esperamos pelo garçom. Ao chegar, Vívian foi logo dizendo:

  • Estou sem dinheiro, estou com fome, estou devendo. Vou propor sexo com Farley.

Neste momento, o garçom aparecera para nós. Um garoto de quase dez anos de idade, que já chegou perguntando:

  • Quem vai pedir primeiro?

No mesmo momento em que ele fizera essa pergunta, Vívian continuou sua fala:

  • Quem mais vai querer fazer sexo comigo e com Farley?
  • Eu! – Respondi levantando o dedo, referindo-me ao garçom. – Quais sucos vocês têm?

Vívian começava a rir, acompanhada de Larissa, Erick e Paula. Eu nem prestava atenção no que eles estavam fazendo.

  • Temos suco de maracujá, maracujá com leite, maracujá com maracujá, maracujá com polpa, maracujá de ontem, maracujá nativo e chá de maracujá.
  • Quero maracujá com polpa – dizia Paulinha.
  • Maracujá de ontem – gritava Erick.
  • Maracujá com Maracujá – disse Vívian, passando a língua nos lábios.
  • Quero chá de maracujá – falou Larissa, tão baixo que ninguém escutara.
  • Desculpem! Acabaram todos. Só temos maracujá e maracujá nativo.
  • Eu vou querer um suco de laranja, por favor. E coloquem aquelas sombrinhas que vocês baianos adoram! – disse, empurrando os óculos contra a face. Como sabia que não usava óculos, peguei os de Larissa emprestados, só para fazer esse gesto.

O resto da turma pedira maracujá nativo. Não pedi exatamente por não conhecer o suco, já que aquilo não era natural na minha terra. Quando chegou, fiz questão de roubar o copo de Paulinha para provar um pouco.

Pedimos então os sanduíches. Examinei um a um para não desperdiçar o dinheiro. Ali, cada sanduíche custava, em média, R$ 5,00. O suco era apenas R$ 1,00. Algo raro em minha terra, já que os sucos naturais ultrapassavam a casa dos três reais. No cardápio, os sanduíches possuíam nomes estranhos. Não eram como os daqui que tinham nomes de carro.

Para não fazer feio, resolvi pedir um frambúrguer, que era um sanduíche como outro qualquer, alterando apenas a carne bovina por carne de frango, caso alguém não tenha compreendido o nome. O garçom em miniatura anotou os pedidos e se foi. Enquanto esperávamos, tiramos algumas fotos. Depois, Vívian apanhou um de seus cigarros e foi fumar ao meu lado:

  • Vívian, qual a graça que você vê em fumar? – perguntei-lhe.
  • Eu não fumo para rir! – disse-me, com cara de desaprovação, soltando uma boa quantidade de fumaça em meu rosto.

Por fim, começamos a cantar uma música que Larissa já estava cantando há alguns dias: Não aprendi dizer adeus, de Leandro & Leonardo. Quem a ouvia, não estava bem. Quem estava bem, ficava depressivo. Quem estava depressivo, ficava na fossa. E quem estava na fossa, estava a ponto de cometer suicídio. Larissa já estava no penúltimo estágio. Por isso, cantamos todos juntos para ver se ela resolvia se enterrar de uma vez por todas. Quando já estávamos no auge da música, uma garçonete, provavelmente mãe ou tia do menino, aparecera anunciando:

  • Quero avisar que o frango acabou – disse ela, sorrindo, enquanto dois ou três frangos saíam de fininho atrás dela.
  • Sim, e isso quer dizer o quê? – Perguntei, ainda não ligando que frambúrguer era feito de carne de frango.
  • Vocês não pediram frambúrguer? – perguntou a garçonete.
  • Sim! Mas, o que isso tem a ver? – insisti.

Um a um, os que me acompanhavam na mesa batiam suas mãos, abertas, na testa. A garçonete começou a bater sua cabeça contra a parede rebocada.

  • Alguém pode me dizer o que está acontecendo? – Elevei o tom de voz.
  • Álisson! – dizia Paulinha, calma, colocando a mão em meu ombro – não tem Frambúrguer.
  • E por que vocês não me disseram isso antes? Tudo bem, então. Pode ser um hambúrguer tradicional. Mas, ao invés de carne de boi, ponha de frango.
  • Senhor, o frango acabou! – disse a garçonete, um pouco nervosa.
  • E por que vocês não matam outro frango? – falei no mesmo tom.
  • Porque não temos frango. O frango acabou, temos que ir comprar!- disse-me ela, já aos berros.
  • E por que vocês não vão comprar a porcaria desse frango? – berrei também.
  • Álisson, relaxa e pede um hambúrguer. – disse Vívian, calma.
  • Ok, um hambúrguer por favor! – pedi.

E lá foi ela, dando-se por satisfeita ao sair de lá, depois de tanta discussão. Para acalmar os nervos, voltamos a cantar.

♪ Não aprendi dizer adeus, mas tenho que aceitar, que amores vêm e vão, são aves de verão. Se tens que me deixar.. ♪

 

Depois de tanta espera, os lanches chegavam. Do outro lado da rua, um homem, de cabelos cumpridos e barba por fazer, passava. Larissa, Vívian e Erick gritavam, em coro:

  • Ou, Felipe!

Felipe, professor de ecologia da turma da veterinária, passeava com seu cachorro. Ele foi até onde estávamos e nos cumprimentou:

  • E aí, pessoal, tudo tranquilo? Já corrigi a prova de vocês e quero dizer que todos se deram mal, inclusive vocês dois – disse, apontando para mim e Paulinha. – o que vocês estão comendo? Ah! Hambúrguer! Vou querer um de frango.
  • NÃO TEMOS MAIS FRANGO! – Berrava a mulher lá dentro.

Todos se entreolharam. O professor, sem graça, resolve se despedir, mesmo não dando tempo de ninguém ter falado nada.

  • Até amanhã, pessoal.

E lá se foi o homem. Na hora de pagar a conta, foi um conta-moedas para todos os lados, dinheiro jogado ali, dinheiro jogado aqui. O menino, que representava muito bem um garçom, ficava desorientado.

Saímos do local, chutando, empurrando e derrubando cadeiras e mesas. E fomos embora felizes da vida. Larissa aproveitou o momento para informar-me de algo que ainda não tínhamos acertado:

  • Álisson, quinta-feira iremos para Montes Claros. Vamos ver o show da Paulinha.
  • Sério que vamos ver o show de Paulinha?

Meus olhos brilhavam. Ir para o show daquela mulher para olhar suas belas pernas era tudo o que eu queria. Neste momento, um palco brotou do chão, no meio da rua, fazendo um monte de carros se congestionarem (eram três, no total). Paulinha, a aluna da matemática, pega um microfone, sobe no palco e começa a cantar.

Vai se entregar pra mim… ♪

 

            – Uhul! Paulinha! Nós te amamos! – berrávamos todos, enquanto levantávamos uma bandeira com os mesmos dizeres.

  • Como a primeira vez… – continuava Paulinha, empolgando-se cada vez mais.
  • OK! Chega de se entregar e vamos embora pra casa – disse Vívian, impaciente, puxando Paulinha dos palcos pelos cabelos, enquanto a garota dava um de seus gritinhos histéricos.

Enquanto caminhávamos, Larissa e eu cantávamos outras canções antigas de sertanejo, o que deixava Vívian mais furiosa ainda. O problema era que a maioria das músicas eu conhecia. Sucessos como “tira essa roupa molhada”, eram cantadas em alto volume para que todos ali, naquela cidade, pudessem escutar. Algo triste de se ver em uma juventude que caminhava para a perdição.

Quando chegamos à república, o pessoal ainda trabalhava arduamente. Letícia e João já bocejavam, reclamando por termos demorado tanto. Como já estava tarde, todos se despediram. Decidiram terminar no dia seguinte. Arrumamos as camas e fomos dormir. Larissa e eu dividíamos o quarto, com as duas cadelas, enquanto Tchely, Brunna e Paula dividiam a mesma cama de solteiro. E a noite prosseguia com uma sinfonia de roncos, uivos e latidos.

Enquanto isso, naquela madrugada, Sol partia em busca de sua felicidade.

Mais ou menos Salinas (1)

Capítulo 1: E esse ônibus que não chega nunca

O relógio já marcava 21h quando cruzava os limites de Uberlândia. Ao meu lado, uma mulher, de sotaque baiano, já anunciava enquanto tiravas suas enormes botas pretas do pé:

  • Não se preocupe, não tem chulé!

Eu precisava disfarçar meu desconforto ao perceber que aquele cheiro subia rapidamente ao meu nariz e virei o rosto. “Que alívio!”, pensei por estar do lado do corredor, até ver que outra mulher, uma senhora de, mais ou menos 60 anos, também tirava seus sapatos. Neste momento, ouvi um celular tocando ao meu lado. Era o da mulher de sotaque baiano.

  • Oi, meu bem, como você está?
  • Ah, oi amor! Estou muito bem e você? – Respondi, fazendo biquinho.

Nisso, a mulher me olhou com cara de desprezo e apontou para o celular Motorola, modelo PT-550.

  • Ah, não é nada! É só um idiota aqui do meu lado, falando com a namorada ao celular que, por sinal, deve ser uma baranga por namorar um cara feio desses! – Novamente ela me deu uma olhada com sua cara de desprezo.

Tudo bem em me chamar de feio ou dizer que minha namorada poderia ser uma baranga, mas dizer que eu estava ao celular quando neste momento ele estava dormindo em meu bolso? É muita covardia pra uma pessoa só! Aquilo precisava de medidas drásticas! Então, fechei meus olhos e vi uma linda cena em que eu puxava os cabelos da moça e fazia sua testa “beijar” a janela de sua poltrona. Reabri os olhos e lá estava eu com um sorriso sacana no rosto.

  • Devo chegar aí por volta de três horas da manhã. Então…

Neste momento, todos os passageiros se viraram para nós, ao ouvirem a mulher gritando com seu marido:

  • TRATE DE LEVANTAR CEDO E ME BUSCAR NA RODOVIÁRIA, PORQUE, A ÚLTIMA VEZ, VOCÊ ME DEIXOU PLANTADA ESPERANDO POR 1 HORA! 1 HORA! QUE DROGA DE MARIDO É VOCÊ?

Todos ali presentes, inclusive o cobrador (o motorista não escutara) estavam assustados. Quem era aquela mulher? O que ela estava fazendo ali? Quais eram seus planos malignos? E por que o lagarto se transforma em borboleta, depois de virar um casulo? Essas eram questões que eu precisava responder. Então, levantei-me e procurei minha lupa de detetive. Aí, lembrei-me de que não me dispunha de uma e voltei a me sentar.

  • Tá bem, amor. Estou ansiosa para revê-lo. Eu também te amo. Beijos!

A mulher desligava o celular e o guardava em sua bolsa. Ela também demonstrava um belo sorriso. Pelo visto, e como todos também perceberam, ela era muito apaixonada pelo homem que deixara em sua cidade. Resolvi arriscar um assunto, enquanto ela, cuidadosamente, colocava seus pés descalços nas costas da poltrona em frente:

  • Então, você é da caravana de onde?
  • Eu sou de Pirapora!
  • Cadê a torcida de Pirapora? – levantei-me e falei alto para a turma inteira do ônibus ouvir.
  • Cala a boca, eu quero dormir! – gritava um irritadinho, ao fundo.

Então, sentei-me, muito sem graça, a espera de alguém vir ao meu encontro para me consolar. Como ninguém veio, continuei a conversa com aquela simpática mulher:

  • E, então…
  • Então… – disse ela sorrindo.
  • Está quente, não? – Perguntei meio sem assunto, sabendo que a temperatura interna era de 16ºC.
  • Muito! – disse ela, fechando sua blusa de frio.
  • Pois, é!

Eu estava me sentindo muito ridículo quanto àquela situação. Não conseguia puxar um assunto sequer. Pelo visto, como todas as minhas outras viagens, não iria conseguir fazer uma nova amizade. Mentira! Pois, da última vez, consegui fazer amizade com o cobrador.

Aconcheguei-me na poltrona. Puxei a alavanca que estava do meu lado direito para deitá-la, mas, para minha infelicidade, a poltrona estava quebrada. Descobri isso segundos depois, quando já estava em uma posição de 180º e eu estava com olhos mirando bem dentro do vestido da garota que se sentava atrás de mim.

Alguns minutos depois de eu ter arrumado a poltrona e ter ganhado um belo roxo de cinco dedos em meu rosto, lá estava eu tentando pegar num sono novamente. Como não consegui, resolvi novamente puxar assunto com a mulher ao meu lado que, neste momento, olhava com solidão para a paisagem noturna pintada pelas mãos divinas:

  • E, então, você tem parentes aqui em Uberlândia?

Assustada, ela virou seu rosto para mim, deu um sorriso e começou a responder:

  • Sim, sim! Mainha mora aqui. Passei um fim de semana inteiro com ela. Muito bom! Não tinha conhecido uma cidade tão bonita quanto essa. Espero que volte logo.

Ela me contou que passeou pelo Parque do Sabiá, um zoológico que havia na cidade. Também passeou no shopping, viu alguns filmes, comeu no Habib’s e ainda dançou ao som de Lady Gaga em alguma boate GLS por aí.

  • Essa última é mentira! – disse a mulher para o narrador da história.

Com isso, acabei me lembrando do que fiz com meu amigo André nesse domingo. Aproveitamos para andar pelas lojas de brinquedos, lojas de cds e dvds, olhamos os livros mais interessantes (a livraria, inclusive, possuía o nome de tantos escritores, que fiquei imaginando se algum dia poderia ver o meu ali), ainda vimos alguns jogos e fomos brincar com um tal de iPad.

Mais tarde, ainda fomos ao cinema para ver em 3D o filme Transformers. Reclamei com ele ainda, já que eu detestava o filme, mas não nego que tive arrancadas boas gargalhadas de mim.

Ao final do dia, ainda fomos à igreja e jantamos em uma pizzaria. O garoto estava encantado, pois era a primeira vez que ele ia a um rodízio de pizza, além de comer uma deliciosa fatia de pizza de chocolate (lá, conhecida como ‘sensação’). Depois, pegamos um táxi e ali, na rodoviária, nos despedimos. Ele voltando para casa e eu rumando para a longínqua cidade da cachaça.

Adormeci. Neste momento, o ônibus já estava saindo de Pirapora. A mulher ao meu lado já desembarcara. Será que seu marido a buscara? Caso contrário, ele apanharia.

Amanhecera. Já eram 6h quando entrávamos em outra cidade. Percebi que havia adormecido devido à baba fresca no canto da boca. Limpei-a. Olhei para o lado do corredor e perguntei a uma mulher do meu lado onde estávamos. Entramos em Montes Claros.

“Montes Claros?”, pensei. Como chegamos tão rápido se pelos meus cálculos chegaríamos depois das sete? Ainda havia mandado algumas mensagens à Larissa sobre tal fato para que ela pudesse arrumar um táxi para mim e isso só seria possível se eu chegasse na hora que eu realmente estava chegando. Mas, agora era tarde. Eu já não podia mais pedir que a garota nascida em Belo Horizonte, que já morou em Montes Claros e agora estudava em Salinas, remarcasse para mim.

Olhei para o relógio. 6 horas e 7 minutos. Comecei a me desesperar. Em uma das mensagens dela estava escrito que o ônibus com destino a Salinas desembarcaria em oito minutos. O próximo seria apenas às dez. E nem sinal da rodoviária. Ficar sozinho numa cidade daquelas por tanto tempo me dava um frio na espinha. O que eu faria até lá? E que mal seria chegar depois das 13! Mas, um pouco de esperança ainda havia em mim.

6h10. O ônibus finalmente estacionara em seu destino. Tentei sair o mais depressa possível para conseguir pegar minhas malas e embarcar. Salinas começava a ficar mais perto do que eu imaginava. O coração batia forte, mais acelerado. A emoção tomava conta de mim.

Fui o primeiro a chegar ao bagageiro, depois do cobrador, claro! Ele já abria uma das portas e começava a tirar as malas.

  • Moço, por favor, o senhor poderia pegar minhas malas? Eu preciso viajar e o ônibus está a ponto de sair.
  • Muito bem! – dizia o cobrador – qual é a sua mala?
  • Ela não está nesse compartimento, está no outro.
  • Sinto muito! Eu não estou autorizado a abrir o outro bagageiro enquanto não esvaziar este.
  • Mas, eu preciso delas agora, senão vou perder o ônibus.
  • Lamento, não há nada que eu possa fazer.

“Não há nada que eu possa fazer?” Como não? Era só abrir a droga do outro bagageiro e entregar o que eu precisava! Isso é o que eu chamo de má vontade! Deveria era ter fechado a porta de onde ele estava e deixá-lo trancado até que alguém sentisse falta. Assim, ele aprenderia! E apodreceria!

Sim, eu estava revoltado. Mas, não tinha muito tempo para me preocupar com isso. Saí correndo até o outro ônibus e lá estava o motorista, recebendo as passagens de outras pessoas.

Respirei fundo. Não era algo tão grave, se olhasse por outro ângulo. Fiquei do lado do homem de uniforme e supliquei:

  • Com licença, moço. Eu preciso viajar neste instante pra Salinas, mas ainda preciso pegar minhas malas. Você pode esperar pelo menos uns cinco minutos só para eu pegá-las?
  • Olha, rapaz, é o seguinte. – começou o motorista, em um tom mais agressivo – Eu não posso me atrasar pra viajar, então não vai achando que eu vou poder esperar você voltar ao hotel pra buscar suas benditas malas. Vai lá correndo. Se der tempo, você embarca, senão você pega o próximo ônibus.
  • Minhas malas estão no outro ônibus! – já estava exasperado – eu só estou esperando o outro cobrador descarregar as outras malas para eu poder embarcar!
  • Já disse que não posso atrasar aqui. Se quando você voltar o ônibus tiver partido, pegue um táxi e peça para o taxista te deixar na Rua Pimentel que nós fazemos embarque por lá. Você tem quinze minutos. Boa sorte! – disse ele, sumindo nas sombras.

E, neste momento, eu via Salinas afundar. A vontade que eu tinha, depois de trancar um e enforcar o outro, era de desistir de tudo aquilo e voltar para a minha terrinha, mas eu já estava longe e não podia desistir. Ainda havia esperança, pois havia uma luz e era aquela luz que… como era mesmo o resto da música?

Aproveitei a adrenalina que pulsava forte em meu sangue e voltei para o primeiro ônibus. Finalmente o outro bagageiro estava aberto. Passei na frente de todos e já fui falando alto para o motorista:

  • Senhor, minhas malas! Eu preciso delas para viajar! O ônibus já está saindo!
  • Muito bem, quais são suas malas? – disse ele, atendendo prontamente, talvez para compensar o que fizera.
  • São aquelas duas ali no fundo. – eu apontava para as malas, próximas a ele.
  • Lamento senhor, mas não posso tirar as malas do fundo antes de retirar essas que se encontram à minha frente.

Era inacreditável. Sentia o chão abrir sob meus pés. Aquele dia, recém-nascido, acabara de morrer para mim. Salinas virava pó neste momento. Era triste pensar que naquele início de férias nada mais daria certo. Eu já nem sabia o que fazer. Todos os meus sentimentos brigavam entre si para ver quem comandaria minhas próximas reações.

Tudo sumira. As pessoas, as rodoviárias, os montes. Eu teria que ficar mais quatro horas naquela cidade, esperando e esperando. E sabe-se lá o que…

  • Para de drama, Álisson! – dizia uma voz antes de dar um tapa na minha cabeça, fazendo-me acordar de meu transe.

Finalmente, as malas estavam acabando. Depois de tanto sofrimento, recebi-as. Fui correndo para o outro ônibus e, num salto, capotei. O ônibus já saíra da plataforma e já estava virando para sair da rodoviária.

Eu poderia ter me ajoelhado naquele instante e começado a chorar, mas nem todas as minhas esperanças se esgotaram. Parti para o último recurso que me restara: Dirigir-me à Rua Pimentel por meio de um táxi. E, se isso tudo isso falhasse, aí sim, ajoelhar-me e chorar como uma criança que perde seus doces no meio da rua.

Corri para a ala dos táxis e já parei o primeiro que vi:

  • O senhor pode me levar até a Rua Pimentel? Preciso pegar o ônibus que vai para Salinas e ele para lá para embarcar as pessoas.
  • Claro, entra aí!

Apressadamente, joguei as malas no banco de trás, fui para o banco da frente, sentei-me, fechei a porta e esperei o taxista acelerar. E ele acelerou. Apontei para o ônibus que estava na nossa frente e disse:

  • Siga aquele ônibus!

Rá! Eu sempre quis dizer isso. Mas, para minha infelicidade, ele disse:

  • Tenho outro plano. Consigo chegar ao ponto antes que você possa imaginar.

E lá fomos nós rumar para outra estrada. Aquela velocidade, somada à emoção de chegar antes do horário, sem saber quanto tempo levaríamos, dava uma sensação de estarmos em um daqueles filmes de ‘Velozes e Furiosos’. Até pegaria minha máquina fotográfica para registrar esse momento único, mas estava tão preso àquela emoção que deixei para lá.

E o táxi não corria, mas voava. Cada lombada era uma sensação de frio no estômago e adrenalina pura. E quanto mais ele corria, menos eu tinha a sensação de que chegaria a tempo. Sim, estava numa sensação completamente reversa. Eu já nem sabia de mais nada, só sabia que queria chegar vivo ao meu destino.

O ponto já estava à vista. De longe, eu via aquele ônibus azul se aproximando. Não haveria tempo de embarcar. Era tenso poder imaginar que não acabaria bem. Mas, neste instante, o taxista saltou de sua poltrona e logo ficou de frente para o ônibus. Destino: Januária.

  • Fique tranquilo! Não é este.

E aí ele perguntou aos outros futuros passageiros sobre o ônibus que eu aguardava.

  • O ônibus para Salinas já foi?
  • Não, ainda estamos esperando! – Respondia uma mulher loira, já grávida de quatro meses.

Respirei mais aliviado. Era muito bom saber que nem tudo estava perdido. Agora era só esperar pelo ônibus. Estava quase pulando nos braços do taxista de tanta felicidade, quando ele anunciou em alto e bom som:

  • Quinze reais.

Ele anunciara o preço da corrida. Do voo, melhor dizendo. Olhei para o taxímetro e, novamente, olhei para ele, com cara de desconfiado. Estava marcando R$ 11,40.

Percebendo que não deveria ter dito isso, ele tentou consertar:

  • Mas, tudo bem! Vou cobrar só R$ 13,00.

Resolvi relevar. Motivos? Eu já estava impaciente com toda aquela história. Queria apenas repousar meu ‘assento’ e viajar em paz. Fora que ele também conseguiu me deixar ao destino antes que o ônibus pudesse aparecer. Por último, mas não menos importante, eu sou rico! Muito rico! Logo, aquele dinheiro não me faria falta alguma.

Tirei as malas do banco e me juntei ao povo. O taxista partira. Agora, era hora de esperar. E esperamos. Após dez minutos, lá estava o ônibus que tanta raiva me fizera passar. O ônibus parou. O cobrador desceu. As malas foram postas no bagageiro. Quando fui subir, o motorista me abordou:

  • Deu tempo, né?

Ele me disse isso com um singelo sorriso sacana. Como não queria briga nem nada, apenas disse:

  • Graças a Deus, né?

“Não graças a você, que fez questão de me fazer sofrer e gastar dinheiro” – pensei.

Mesmo tão revoltado, embarquei, procurei uma poltrona livre, deixei minha mochila no chão e me aconcheguei. Abri um dos zíperes da mochila e peguei meu videogame portátil, um DS. Ao meu lado, uma jovem mulher, muito bonitinha, de cabelo Chanel que tentava dormir.

Comecei a jogar para passar o tempo. Pelos meus cálculos, chegaria ao meu tão demorado destino às dez da manhã, agora mais tranquilo por não haver mais paradas.

De tantos jogos, escolhi Pokémon. Meu Piplup já estava quase evoluindo, quando sinto um leve movimento proveniente de meu bolso. Puxei meu celular, olhei o visor e fiquei feliz com o nome que li.

Era Larissa, que agora me ligava pra saber exatamente onde eu estava e combinarmos minha chegada.