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Jaula

Deitado em meu quarto, vejo uma nuvem se formando. Coração bate apertado e os olhos piscam improvisados, enquanto uma névoa, por ali, paira, mesmo nos mais intensos dias de verão. Eu deveria estar lá fora, jogando bola, onde a relva, em descompasso, dança levemente com o sopro do vento, mas não posso. Meus pés congelados me impedem de realizar o simples movimento de chegar à chave e girá-la. Estou em minha própria jaula. 

Meus braços seguem envoltos por uma sombra e minhas pernas descem pelo colchão, até o chão, em ritmo lento. Tento me arrastar, mas o piso se liquefaz, me afundando cada vez mais. Emergir não é solução prática quando se mergulha em tão mar profundo, pois me entrego às ondas, formadas de tão poucas lágrimas que escorrem em silêncio. E eu nem me dou ao trabalho de secá-las. 

E por que sigo assim se há tanto por aí pra se ver? Não entendo! Seria uma força do além ou eu sem força pra existir? E eu nem sei se me importo mais. O colchão é o que me conforta e me dispensa de qualquer esforço, o que não é difícil, quando nem o corpo se propõe a reagir. Em meu quarto, sou um móvel qualquer, esperando o tempo passar, vendo os ponteiros darem a volta, vendo a alegria sair pela porta. 

O canto da natureza é belo, mas, pra mim, não faz qualquer efeito. A luz que me aquece vai perdendo sua força, na mesma intensidade em que a minha deixa de existir. É como a vela que se diminui a cada lampejo de seu brilho. É como eu mesmo, objeto inútil, bradando meus defeitos. E o cansaço, de me levantar todos os dias vai contra os meus mais profundos desejos. 

Mas as nuvens se vão e o sol, em meu quarto, insiste em brilhar. Ainda não é hoje que tudo se findará. Mas eu tento, me sento na beirada da cama pra ver os jovens correndo atrás de uma bola vindo me chamar. 

Eu não estou sozinho, apenas debilitado por não me levantar. O frio só eu sinto, mas a vida, todos os dias, se dispõe a me chamar. 

Créditos: Image by Free-Photos from Pixabay

Esta eu não sei dançar

Corro pela cidade, passando por cada lar. Cada qual em sua própria bolha, fechados, não posso entrar. Há um mistério que nos ronda quando o brasão da confiança surge no ar. Quais dos meus milhões de segredos eu escolho pra poder contar? 

Ao longe, vejo um grupo de pessoas se posicionando sob a luz do luar. Sob as estrelas, o céu escuro observa que uma pequena roda começa a se formar. Há uma praça, levemente iluminada, por alguns postes pichados, circundando uma fonte d’água que, há anos, não deixa nenhuma criança se molhar. Talvez ela só não esteja tão seca quanto a minha vontade de entrar naquela roda e participar. 

Na roda eu não me encaixo, na roda eu não quero entrar, porque essa roda só roda no ritmo em que eles querem dançar. E essa dança é triste. Ela é preta, branca e, às vezes, uma cor pra enfeitar. Mas eu não tenho uma só cor, pois todas elas são bem-vindas. Eis o meu jeito de dançar.  

Aos poucos, me afasto. Um ou outro me para. Querem conversar. Eu não sei o que você quer de mim, se todos os meus atos têm um conselho seu. Parece que alguém te ensinou que todos os meus passos estão errados e que você é o mentor que vai me tirar do buraco. Mas, não me engano, eu também sei. Tenho uns anos bem vividos e, por alguns castigos, também passei. A experiência me faz ser o ser que a experiência do seu ser não consegue ver. 

Sou eu o errado por não querer ter nenhum de vocês ao meu lado? Essa vibe de querer me fazer dançar apenas o que eles querem dançar não está em nenhum dos meus contratos. Deixe-me criar minha própria dança, deixe-me ser feliz com minhas próprias escolhas. O seu conselho pode até ser bom em algum momento, mas se você me força, se eu não quero, fica quieto. Cada um em seu caminho, tão simples! Não precisa insistir. 

Há uma teoria. Um pouco falha, mas que tenho prestado atenção. Aquele que te aconselha, que tudo crê que em sua vida é um aprendizado, só te fala o que lhe convém. E, quando é hora de ouvir, te ignora, te refuta ou se justifica, pois, em suas palavras, não há agrado. 

É. Aquela roda é bonita de se ver. De longe. Aquela roda tem sua própria luz. Mas, agora, sigo o meu caminho, do meu jeitinho. O que eu crio é mais bonito pra mim, claro, pois só eu sei dos passos que a vida tem me ensinado. E a minha dança, mesmo incompleta, é o meu legado. 

Créditos:
Photo by Sora Sagano on Unsplash

Roteiro do próprio fracasso

O mundo resolve dar toda a atenção, é hora de mostrar todo seu talento. Depois de ter ensaiado, preparado a voz e repetir, inúmeras vezes, o discurso, ele está pronto para declamá-lo em público. As cortinas se abrem, a plateia aplaude, ele dá pequenos passos, o auditório se cala e é a sua vez. 

Ele olha para todos os outros, nervoso, começa a suar frio, a voz não sai, o desespero aumenta. Seria melhor recuar ou nem ter subido no palco? A plateia ainda espera e ele não sabe o que vai acontecer se falhar. Imagina que todos vão desconstruir toda sua imagem naquele momento, pois este não é o seu lugar. 

Simplesmente, não é o seu lugar. 

Desesperado, foge dali, com seus medos e seus pensamentos negativos. Ele não consegue aceitar que falhou mais uma vez, mesmo ensaiando tanto. As risadas ecoam por sua mente, enquanto corre, aos prantos, sem destino a rumar. Não consegue ser mais um na multidão, é alguém que está aquém dos padrões da sociedade. 

Não consegue se lembrar de tudo de bom que já foi capaz de realizar, do que já fez pelos outros. Nunca parou para pensar nos êxitos que logrou, ou quase. Só pensa naquele momento, em todo seu fracasso, nas falhas que sempre teve. Não percebe que todos são assim, porque só se lembra do êxito deles. 

Não quer mais erguer a cabeça, não pensa em lugar, não pensa em gritar. Não quer saber mais de ninguém, por acreditar que não tem mais ninguém. Ninguém é capaz de tirá-lo daquele buraco que ele mesmo havia se jogado. A vida nunca te dá as mãos, só lhe dá as costas, só pensa em derrubá-lo. 

Não consegue contar seus problemas a ninguém, porque sabe que será motivo de piada. Mas, não permite que outras pessoas se afundem em seus próprios problemas, porque ele não quer ninguém como ele. Não permite que outros chorem, mesmo que lhe custe a própria felicidade. Sente-se sozinho por não conhecer quem o compreenda profundamente. 

Afasta-se dos mais próximos e os transforma em seus piores inimigos. Nada mais lhe importa, não quer mais saber de seguir assim. Continua a atuar pelos palcos da vida, sem ânimo, sem vontade, apenas com a ideia de que nada mais importa. 

Até que um dia, foge do roteiro para rascunhar o que, talvez seja, o fim de sua própria peça. 

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