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O Espaço Vago na Mochila

Olha que surpresa! Estamos aqui conversando já algum tempo. Nem vi a hora passar. Entre um gole e outro desse chocolate quente, a gente conta um pouco de nossas vidas, aqueles momentos que perdemos do outro. Você me mostra fotos de sua família e me conta sobre sua bela carreira profissional, eu te conto sobre as viagens e pessoas que passaram por mim. 

A gente ri e se diverte como amigos que nunca se separaram. Eu ainda me lembro com carinho de suas manias e de suas distrações. Você fala daquele dia em que tentou me ensinar a patinar no gelo, que eu me desequilibrei e derrubei aquela moça que patinava com cuidado com seu namorado. Que desastre! Quase apanhei. Você não sabia se ria ou se se apavorava. 

Um brinde pelas memórias. A gente sabe bem completar as histórias do outro. Nem parece que faz onze anos que fizemos aquela trilha de bike e fomos parar numa linda cachoeira. A água estava fria, mas você nem quis saber. Me fez tomar aquele banho gelado. Eu ainda rio algumas noites me lembrando de como amaldiçoei seu nome naquela tarde. E agora só querendo reviver aquele dia de novo e de novo. 

E a confusão naquele dia do shopping? Eu te disse pra você ter um pouco mais de atenção, pois distração sempre foi um de seus defeitos e você me sai da loja com o celular do mostruário no bolso esquerdo do seu paletó. Aquele paletó azul que você comprou porque seu ídolo de futebol americano usava, lembra? Pois é. Até explicarmos que tudo não passou de um mal-entendido. Eu só pensava no que nossos pais diriam se soubessem que poderíamos ter sido presos. 

Agora estamos aqui rindo de todas as nossas histórias. E são muitas pra contar e compartilhar. Tantas boas que não me vem à cabeça a razão de termos parado de nos falar. Sei que a gente era meio imaturo. Ou apenas eu? Lembro-me de como éramos apaixonados um pelo outro, mas não me lembro por qual motivo havíamos terminado. Foram as brigas? As indiferenças? Eu não sei, parece que sempre fomos muito felizes para termos vivido longe um do outro por tanto tempo. 

Eu nunca te esqueci, juro. Você seguia fazendo parte de muitos de meus momentos. Tentei viver com outras pessoas o que vivi com você, mas a gente sabe que cada um faz parte de nossas vidas de maneiras diferentes. Você foi especial, mas ficou num passado distante. Cada um construiu seu próprio caminho, com algo faltando na mochila. Sua família é linda e meus planos não envolvem mais você. Eu nunca te esqueci, ainda levo um pouco de você.

Foto de EKATERINA BOLOVTSOVA no Pexels

If the World Didn’t Suck (We Would All Fall Off)

Quando eu tinha apenas dois anos,  meu pai, segurando-me em seus braços, olhou-me nos olhos e disse: “Você é capaz de dar seus próprios passos”. Pôs-me no chão e a cena seguinte consistia em um lento caminhar de uma pequena criança numa pequena sala. Quando eu cresci, segurando minha mão, ele me disse: “Não pare até encontrar seu próprio caminho”. Soltou-me e a próxima cena era de uma pequena criança, num corpo de um adulto, caminhando por uma grande sala conhecida como mundo.

E assim minhas primeiras pegadas faziam marcas por longos trilhos percorridos com uma grande interrogação pairada sobre minha cabeça. “Afinal, o que significavam suas doces palavras?”

Com minha mochila nas costas e pouca bagagem, viajei por histórias diversas. Fiz escolhas boas e más. Em algumas estradas, podia relaxar, descansar, tomar um pouco de sol e me banhar em águas claras, sentindo o frescor do vento da colina. Em outros, espinhos, subidas íngremes, buracos, cobras. Outros, não havia nada, simplesmente.

Algumas vezes me perdi. Curvas e bifurcações me confundiam e me intimidavam.Entretanto, fiz-me amadurecer e refletir a cada novo passo. Um pequeno tijolo chamado aprendizado que aos poucos iam levantando um grande castelo chamado sabedoria.

Durante minha jornada, sentava-me à sombra fresca de meus pensamentos e escrevia uma nova poesia. Novos forasteiros se ofereciam para caminhar ao meu lado. Outros, mais pretensiosos, guiavam-me por um caminho próprio. Era minha decisão segui-los ou não. Convenciam a mim sobre o que deveria ou não fazer. Aos poucos me moldavam.

Quando me apaixonei, o amor me levou a uma bela ilha e por um tempo pude apreciar uma nova paisagem. Pomares, represas, tigres e alpinistas, deram lugar a peixes, areia, palmeiras e água salgada. Um novo sabor a ser degustado.

Foi uma breve distração que, por algum tempo, me fez crer que ali se escrevia mais um final feliz. Não era verdade. Quando me dei conta, olhei para os lados e me vi solitário naquele paradisíaco lugar. Não deveria eu ter finalmente encontrado meu caminho?

Ao regressar, um novo impasse: alguns viajantes já não estavam mais ali e algumas de minhas poesias transformaram-se em pó logo soprados pelo vento. Aquela ‘pedra no meio do caminho’, me fizera tropeçar.

Então, pude perceber algo: minha história não terminaria assim. Caminhando por novas estradas, outros viajantes me encontravam e escreviam novas poesias em meu diário. Então, pela primeira vez, senti a liberdade tomar conta de mim. Eu mesmo era capaz de guiar outros tantos viajantes e escutar tão semelhantes histórias vividas.

Por tanto tempo, não percebi que aquele já era meu caminho. Não importava o quanto havia vivido, sempre outros trilhos surgiam e as más escolhas por vezes se repetiam, tais quais as boas, impedientes de desmotivação. Nestas, encontravam-se meu apoio.

Pare um pouco e me ouça com atenção. Se sua mente não tiver ciência de que estamos num ciclo em que apenas alguns personagens e meras características são capaz de sofrer suas generosas alterações, talvez você não compreenda que, enquanto aprendemos a dar nossos passos, já somos escritores de nossos livros, sem direito a apagadores ou borrachas. Somos o que somos para valer, não meros expectadores.

Por isso, é hora de fazer valer. Tenha os pés no chão. Tudo bem se a mente flutuar de vez em quando, é normal, mas lembre-se: você é o personagem principal. Não é hora de se caracterizar tal papel com tamanho afinco?

Ao finalmente retornar a meu lar, coloquei minha mochila sobre minha cama e a esvaziei, admirando cada item retirado. Encontrei poesias, canções, sonhos, odores, sabores, marcas, sujeira, lágrimas, sorrisos, olhares, lembranças, flores, roupas, brigas, amizades, amores, mistérios, verdades, mentiras, sins, nãos, talvez. Encontrei enredo. Encontrei desfecho.

Quando eu tinha apenas dois anos,  meu pai, segurando-me em seus braços, olhou-me nos olhos e disse: “Você é capaz de dar seus próprios passos”.

https://www.youtube.com/watch?v=J9ab1a0mtpg