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Anacrônico

Imagine uma jovem moça que acabou de sair de sua comunidade e se mudou para uma pequena vila distante, onde todos são tão estranhos de você. Eu estava acostumada com uma vidinha tão simples, com tantas pessoas que conheço e agora estava aqui, num lugar diferente, com outros rostos, outros costumes, outro estilo de vida.

Todos nesse lugar se conheciam, mas não me conheciam. Os olhares se voltavam para mim frequentemente se perguntando: “Quem é essa garota que se veste tão distinta a nós? Que olhar tão vulnerável é esse que nos está presente? De onde poderia ter saído?”

Eu não os via como iguais e eles não me viam como normal. A chegada de um ser estranho lhes remetia a um medo tão grande que acredito que poucos ali, de fato, ouviram minha voz.

Mas o que me deixava intranquila era a forma como eu era julgada. Eu não precisa mostrar o que eu pensava, nem ninguém se arriscava a me conhecer profundamente. Eu era um livro raso, examinado pela capa que eu não podia ocultar – a menos que pudesse não mais sair de meu, e detesto dizer isso, novo lar.

Tudo em mim era estudado: Desde minhas roupas, ao meu olhar, à forma como penteio meu cabelo, se meus sapatos estão sujos ou se prefiro comprar o Disco Y ao invés do X – “e nem ouse reclamar se estiver em falta”.

Sim, sou a mesma pessoa, mas o meio me força a uma adaptação, de uma maneira ou de outra, mesmo que minha raiz vá de encontro a essa porta que não se abre pra mim.

E, mesmo que sempre haja outras escolhas, a primeira, e única, era que tudo se deve aceitar, já que “poxa, você tem que ser como todos nós, assim fica mais fácil de a amarmos. Não seja essa garotinha tão rebelde, como se quisesse mudar o mundo. Venha, há algumas lições que você precisa aprender, todos vão gostar de você. Tenho uma roupa que lhe cabe direitinho, todos vão amar seu novo look. Ah, mas você não pode falar nem agir assim, que tal mudarmos tudo isso pra você se tornar alguém melhor? Você terá muitos novos amigos”.

Claro que terei, claro que todos me amarão, serei como eles. O que me resta? Talvez, o modo mais fácil de encarar tudo isso seja caindo em uma overdose desta nova realidade em que, sozinha, não sou capaz de mudá-la por completa.

Só que não estava entre minha lista de anseios me guardar tão profundamente em mim. Outra história que poderia ter outro final se antes, sentado ao meu lado, pudessem ter embarcado na minha história, de cultura tão diferente e de tão rico conteúdo, mas de que vale se o exterior é mais importante?

Então, abra sua cabeça! Iremos penetrá-la com nossos conceitos, para que você deixe de ser mais uma velha fora de moda. Não precisa resistir, não vai doer nem um pouco, não se preocupe”.

A saideira

  • Hey, Priscila! Você por aqui nesse bar?
  • Edu! Que surpresa agradável em ter sua presença.
  • Igualmente. Estava com meus amigos naquela mesa mais distante, distraindo um pouco a cabeça. Se tivesse te visto antes teria te chamado para se sentar conosco.
  • Tudo bem! Estou aqui com uma companhia de anos, meu amigo Martin.
  • Tudo bem, Martin? Prazer em conhecê-lo
  • Igualmente, cara.
  • Bem, preciso ir. Está um pouco tarde.
  • Não, por favor, sente-se aí. Fique mais um pouco e tome a saideira conosco. Estava eu aqui já começando uma história que vivi há alguns meses. Seria bom ter seu olhar crítico.
  • Você sabe que sempre instiguei suas histórias.
  • Por isso que você é o ingrediente perfeito para minha receita. Por favor, sente-se.
  • Camarada, por favor! Desce mais uma gelada pra essa mesa aqui.
  • Sim, amigo. Peça uma bem gelada, pois a história que tenho pra contar é uma bebida amarga que desce por nossas gargantas.
  • Como uma bebida quente?
  • Sim. Uma bebida quente que viria bem a calhar às pessoas de temperamento frio que existem nessa história.
  • Muito interessante.
  • Te darei uma dose de realidade. Não essa a qual estamos acostumados: Levantarmos cedo, ir à labuta, estudar a noite, voltar cansado e, nos finais de semana, reunirmos com nossos amigos no intuito de eliminarmos esse stress que nos guarda.
  • A história é tão terrível assim?
  • Digamos ser uma história um pouco dolorosa. Uma história que deveríamos tomar consciência e ajudar.
  • Caramba! Por favor, estou curioso.
  • A história começa numa pequena vila dominada por um carrasco.