Lá vai a garota, com venda em seus olhos, ouvindo outra vez o que ela já cansou de brigar. Já pensou por meses, está decidida. Esta semana, o mar ela ainda vai cruzar. Há um destino distante que ela precisa experimentar, pois aqui ela já gastou tudo, não tem mais seu espaço, precisa aprender a voar.
Lá vai ela, com suas inseguranças, tentar correr contra o tempo que perdera, para ganhar em menos tempo o que ela não ganhou porque precisava conquistar certa experiência. Ela tem sede, ela tem desejos, ela tem esperanças num futuro incerto. Ela vai para um lugar que desconhece, mesmo com seus medos. Eu só acho que lhe faltou um tapa-ouvidos, para lhe acalmar os nervos.
Lá em cima, uma aventura. Seus sentimentos em conflito, não a deixam dormir. Tenta se distrair com as nuvens, mas elas passam monótonas por sua janela. Enquanto tenta ver um filme, a moça de uniforme lhe pergunta o que do cardápio ela vai querer. Ela escolhe, mesmo sem fome. A única fome que ela tem é a resposta para sua pergunta: “como vai ser?”.
Terras estranhas, pessoas desconhecidas. Arrumar um lugar para ficar numa cidade em que ousou pisar pela primeira vez. Seu corpo ali está, mas seu coração ficou lá, a milhares de quilômetros. Há quem lhe quer ver crescer, mas que tem tantas inseguranças quanto ela – e talvez isso eles não consigam fazer transparecer. Precisa de um emprego, precisa de sustento, precisa encontrar sossego. Ela é a estranha de um país que escolheu viver.
E depois de um tempo, ela refaz a rotina. Acorda cedo, coloca sua melhor roupa, penteia seus cabelos. Chega bem no serviço, arruma as mesas, lava o banheiro. Coloca a comida para assar, prepara tudo para a freguesia. Os clientes chegam e ela serve a mesa, equilibrando tudo na bandeja. Recebe uns trocados e volta para conferir a conta. Só tem tempo para sair com as amigas no fim de semana, mas para a família de longe, manda mensagens todos os dias. Não é o ideal esperado, mas já é o melhor que se previa.
Tão tarde ela chega, ainda tem que fazer seu jantar. A casa está uma zona, mas ela está cansada demais. Toma seu banho, seca os cabelos, se olha no espelho, fecha seus olhos e escuta tudo o que já lhe disseram. Sua insegurança bate, seu estômago ronca e ela pensa mais uma vez em desistir. Mas, ela se lembra de seu filho dormindo e isso a determina a seguir. Seu filho dorme tranquilo, em outro país e ela não pode pensar em desistir.
Ei, psiu, fique bem. Tem uma turma entre nós de todo lugar que vai te apoiar. Erguemos nossos braços, firmes, pra você sentir o amor que temos pra te dar. Você está no caminho certo, não nego, mesmo que por espinhos sua pele se arranhe. É árduo, mas continue a percorrê-lo. Não é qualquer um que faria o mesmo.
E se me permite terminar dizer, há uma criança bem linda com orgulho em ter você. É para o bem dela que você tem feito tudo isso acontecer. Há um espaço aí a ser preenchido, logo irá acontecer. Num dia, quando menos se espera, vocês irão se ver.
Cada palavra bem pensada, cada acorde composto no violão, a melodia impecável e a letra bem composta, tantas noites desperdiçadas, jogadas foras… Pela garota que você ama.
O medo da rejeição, o desejo de não seguir na solidão, a timidez que não te deixava prosseguir, os momentos em que não conseguia agir, o motivo que te fazia sorrir… E a garota que você ama.
Cada centavo gasto, flores, chocolates, até o perfume, por horas pensado. As viagens que não davam certo e os convites de amigos diversas vezes ignorado, um tempinho livre, só para ter a chance de estar do lado… Da garota que você ama.
Relacionamentos não se faz de mãos separadas (são dadas), nem quando apenas para um, dois é igual a um (sejam os dois, um só), não vale quando apenas um mergulha tão profundo (quem realmente está perdendo?), nem há que ter medo pelo passado (cabe uma chance?). Talvez pode não ser você o problema, mas é você que no meu ombro irá chorar. Não se culpe por carregar tanto amor, não é você quem deve mudar.
A canção entregue não é recebida com o mesmo valor, o violão não é o instrumento favorito e a noites mal dormidas pouco importam… À garota que você ama.
Ponto de interrogação.
“As flores não me cheiram bem, o chocolate não é o que eu gosto”. Das lutas internas, nem consideração. Ilusão, ilusão, desilusão… Pela garota que você ama,
Ou talvez não
Seu peito, de amor solitário, inflado, procura pelo escape. Deixe-o ir. Há tantos outros sentimentos e momentos, há tantas outras amizades e felicidades, há mais vida, há mais família, há mais você que merecem um espaço aí dentro, impedidos, de certa forma, de crescerem. Deixe-o ir. Deixe o que é ruim sair. Algumas paixões e até amores, imaginados em óleo, não valem o que custou ser, não custam você feliz.
Imagine uma jovem moça que acabou de sair de sua comunidade e se mudou para uma pequena vila distante, onde todos são tão estranhos de você. Eu estava acostumada com uma vidinha tão simples, com tantas pessoas que conheço e agora estava aqui, num lugar diferente, com outros rostos, outros costumes, outro estilo de vida.
Todos nesse lugar se conheciam, mas não me conheciam. Os olhares se voltavam para mim frequentemente se perguntando: “Quem é essa garota que se veste tão distinta a nós? Que olhar tão vulnerável é esse que nos está presente? De onde poderia ter saído?”
Eu não os via como iguais e eles não me viam como normal. A chegada de um ser estranho lhes remetia a um medo tão grande que acredito que poucos ali, de fato, ouviram minha voz.
Mas o que me deixava intranquila era a forma como eu era julgada. Eu não precisa mostrar o que eu pensava, nem ninguém se arriscava a me conhecer profundamente. Eu era um livro raso, examinado pela capa que eu não podia ocultar – a menos que pudesse não mais sair de meu, e detesto dizer isso, novo lar.
Tudo em mim era estudado: Desde minhas roupas, ao meu olhar, à forma como penteio meu cabelo, se meus sapatos estão sujos ou se prefiro comprar o Disco Y ao invés do X – “e nem ouse reclamar se estiver em falta”.
Sim, sou a mesma pessoa, mas o meio me força a uma adaptação, de uma maneira ou de outra, mesmo que minha raiz vá de encontro a essa porta que não se abre pra mim.
E, mesmo que sempre haja outras escolhas, a primeira, e única, era que tudo se deve aceitar, já que “poxa, você tem que ser como todos nós, assim fica mais fácil de a amarmos. Não seja essa garotinha tão rebelde, como se quisesse mudar o mundo. Venha, há algumas lições que você precisa aprender, todos vão gostar de você. Tenho uma roupa que lhe cabe direitinho, todos vão amar seu novo look. Ah, mas você não pode falar nem agir assim, que tal mudarmos tudo isso pra você se tornar alguém melhor? Você terá muitos novos amigos”.
Claro que terei, claro que todos me amarão, serei como eles. O que me resta? Talvez, o modo mais fácil de encarar tudo isso seja caindo em uma overdose desta nova realidade em que, sozinha, não sou capaz de mudá-la por completa.
Só que não estava entre minha lista de anseios me guardar tão profundamente em mim. Outra história que poderia ter outro final se antes, sentado ao meu lado, pudessem ter embarcado na minha história, de cultura tão diferente e de tão rico conteúdo, mas de que vale se o exterior é mais importante?
“Então, abra sua cabeça! Iremos penetrá-la com nossos conceitos, para que você deixe de ser mais uma velha fora de moda. Não precisa resistir, não vai doer nem um pouco, não se preocupe”.
De longe, ouvia-se o velho sino do Parque Central. Barulhento e tenebroso. Alguns juravam ouvir um ruído junto. Outros, diziam ser apenas o ouvido cansado de um morador ancião.
Blim-blém (pausa). Blim-blém (silêncio).
Duas da manhã. O silêncio se rompera com a sinfonia dos ventos. Fazia frio. Não havia quaisquer estrelas e a lua tímida escondia-se atrás de uma nuvem carregada.
Enquanto a cidade inteira dormia, minha namorada e eu procurávamos um bom lugar para um afago. Próximos a um balanço, nos sentamos. Ainda não havíamos notado o pequeno playground tão próximo.
– Poderíamos trazer Bibi algum dia.
Silêncio. Fran tremia. Notei suas mãos roxas e geladas. Entreguei-lhe meu sobretudo e a deitei em meu peito enquanto a abraçava. Ela se aconchegava em mim, enquanto me respondia:
– Não quero trazê-la aqui. Disseram ser este um lugar muito ruim para crianças pequenas.
– Bobagem!
Os boatos diziam que naquele parque muitas garotinhas sumiam, sequestradas, e tinham suas almas roubadas. Boatos nunca confirmados, mas Fran não arriscaria sua irmã caçula num local como aquele.
– Não quero que aconteça nada a ela – Ela me dizia com lágrimas nos olhos.
– Nada de ruim acontecerá a ela, eu prometo – Abracei-a forte, enquanto beijava-lhe a testa – Vocês duas sempre estarão protegidas comigo.
Então, ela me abraçou de frente, com um sorriso. Feliz por meu poder de persuasão e por tê-la acalmado. Mas algo havia me deixado intrigado: Um par de sapatos brancos próximo ao balanço, que eu não havia notado. Minha primeira reação foi empurrá-la.
– Ai, você está me machucando, Mateus.
Voltei a mim. Num reflexo rápido tornei a olha-a, assustado.
– O que foi que você viu? – Ela me perguntava séria, olhando para trás. Os sapatos haviam desaparecido.
– Não, nada, nada. Devo ter ficado impressionado com alguma coisa. Algo que… bem… é… devo ter visto… num filme… num filme de terror, isso, é… num filme de terror.
– Você só vê filmes de desenhos.
– Quando estou com você.
– Você mora comigo!
– Vejo quando você está dormindo…
– Mateus, você sempre dorme primeiro que eu!
– Mas, é que, eu vejo… primeiro que…
Passos. Susto.
– Você ouviu isso?
Estávamos os dois em choque. O que estava acontecendo? Silêncio. Fran olhava para todos os lados. Nada a vista.
Silêncio.
…
– Aaaaaahhhhh…!
– O que foi? – perguntei assustado.
– Ali, atrás de você.
Olhei. Nada. Ela jurava ter visto uma garotinha de olhos brancos atrás de mim. Então, senti algo pesado em meus braços: Fran perdera seus sentidos.
Segundo Ato
“Toda noite venho ao balancinho, Piso nessa areia pra brincar Mamãe não gosta nada, nada, nada Meu sapatinho branco vai sujar…”
Nhéque – nhéque – nhéque – nhéque
“Meia noite e meia no parquinho, Fujo pra sozinha vir brincar Mamãe não gosta nada nada nada Pois sempre me demoro pra voltar…”
Nhéque – nhéque – nhéque – nhéque
Há um boato naquela estranha cidade que diz que todas as segundas-feiras, quando o Parque Central se encontra inóspito, é possível escutar uma voz doce e distante de uma garotinha de quatro ou cinco anos, seguido do rangido do balanço. Alguns moradores já solicitaram a retirada do playground, mas o último prefeito que tentou fazê-lo desapareceu misteriosamente. Desde então, ninguém mais quis arriscar sua vida.
O boato começou há muitos anos, por conta de um cozinheiro famoso da cidade. Ele possuía um restaurante com comidas requintadas, deliciosas e possuía um dom divino em sua arte. Todos na cidade o elogiavam. Seu restaurante vivia cheio e lhe trazia bons frutos.
Mas, sua vida não era tão feliz quanto. Um dia, ao chegar mais cedo em casa, pegou sua mulher com seu melhor amigo e o matou ali mesmo, escondendo o corpo.
Ele continuou casado com a mesma mulher, mas tornara-se um homem frio e sem brilho. Deixou o restaurante para vigiar sua mulher por 24 horas. Mesmo assim, não se dava por satisfeito e a acusava de muitas coisas. Batia e a agredia verbalmente. Ensandeceu-se. Quando sua filha nasceu, duvidou que tivessem o mesmo sangue.
Durante um bom tempo, a garotinha e a mãe viveram em um cárcere em seu porão. Contam por aí que a menininha sempre via a lua pela janela alta daquele quarto frio e dizia à sua mãe que queria brincar lá fora com seus amiguinhos, mas ela só respondia frases curtas, como as da canção da garota.
Quando completou quatro anos, a garotinha conseguiu escapar e correu como pode. Encontrou o parque e foi se divertir no playground. Por um infortúnio, enquanto ela brincava naquele balanço velho, seu pai furioso a encontrou, depois de não a ter encontrado no porão. Sem testemunhas, ele a enforcou com as cordas do balanço e enterrou seu corpo ali, embaixo do balanço. Uma semana depois, sua voz interior gritou mais alto e ele foi ao delírio. Suicidou-se, sem qualquer cerimônia.
Acreditando que algo assim jamais aconteceria, eles trocaram as cordas por correntes de ferro. Já a mãe, até o último instante de sua vida, ficou internada em um sanatório, onde diziam que ela vivia com uma boneca nos braços, tendo esta por sua filha.
“Meia noite e meia no parquinho Corro iluminada pela lua Mamãe me disse: ‘filha não vá sozinha, Pois tenho medo que ele possa te encontrar'”
Nhéque – nhéque – nhéque – nhéque
“Gosto tanto do meu balancinho Nele brinco, brinco sem parar Posso ficar a noite inteirinha Mas papai já está aqui para…”
Terceiro Ato
– Venha brincar comigo, garotinha. Venha ser minha irmãzinha.
– Quem… é… – Fran estava apavorada.
– Vem brincar comigo no balanço.
Fran notava que os olhos da garotinha eram brancos, de uma forma estranha.
– Quem é você? – perguntou Fran com mais coragem.
– Eu sou sua irmãzinha caçula. Eu quero brincar com você. Estou tão solitária. Venha, tome um chá comigo. Está quentinho, acabei de fazer.
– Solitária? Você não tem mãe, irmãs, amigas?
– Mamãe morreu há muitos anos. E eu sempre faço novas irmãzinhas, sempre aparecem para brincar, mas desaparecem depois de um tempo e eu tenho que buscar outra vez.
– Buscar? Como assim buscar? Do que você está falando, garota?
– Às vezes vem uma garotinha ou outra brincar no meio da noite e eu a arrasto para o balanço e ela desaparece logo, logo.
A garotinha cruzou os braços, enquanto fazia cara de emburrada.
– Mas, mas é claro, tudo faz sentido agora! É você quem as sequestra e depois rouba suas almas. O que você faz do corpo dessas pobres garotinhas?
Então, a garotinha abre os braços como se dissesse “não sei” e depois solta uma gargalhada sinistra.
– MONSTRA, SUA MONSTRA! – gritava Fran aos prantos.
– Fran, fran, acorde, o que está acontecendo?
Fran se debatia nos braços de Mateus, enquanto continuava a gritar com a garotinha.
– Você vai me dizer onde escondeu todos os corpos ou vou matar você.
– Você nunca irá conseguir me matar, pois eu… – a voz da garotinha engrossava, enquanto seus olhos brancos brilhavam e sua boca expelia sangue – já estou morta e vou te levar junto, para o meu túmulo HA HA HA!
Assustada e suada, Fran acordava nos braços de Mateus.
– No balanço! No balanço! Elas estão no balanço.
– Fran, fran, se acalme, que você está dizendo? – Mateus perguntava apavorado.
– Temos que destruir o balanço. Os corpos devem estar enterrados logo abaixo. É pra onde ela os leva, para seu túmulo.
Mateus estava um pouco assustado, pois o boato do prefeito desaparecido era forte, mas não sabia no que acreditar. Mesmo assim, eles pegaram algumas ferramentas no porta-malas e atacaram o brinquedo favorito da garotinha.
Blim-blém (pausa). Blim-blém (pausa).
O relógio marcava três horas quando o balanço caía.
Blim-blém (pausa – estrondo do balanço caindo – grito desesperado de uma garota).
O céu ficou branco por alguns instantes, indicando que o espírito havia se recolhido para sempre.
– Conseguimos! Mandamos a alma pra…
– O serviço ainda não acabou, Mateus, temos que descobrir o paradeiro das crianças…
E os dois começaram a cavar a areia do parque. Ao bater em alguma coisa dura, tiraram o excesso da areia até que pudessem ver o primeiro corpo de uma criança, já sem vida. Depois viram o segundo e logo o terceiro. Entreolharam-se com medo, enquanto engoliam a seco.
Acionaram a polícia. Em poucas horas, o local estava tomando de pessoas chorando, enquanto a chuva caía. A garota do parque estava se despedindo de todas as suas irmãzinhas.
Mateus e Fran voltaram para casa suados, cansados e sujos. Eles não estavam felizes, apesar de terem resolvido um mistério de anos. Ter em suas mentes a imagem de tantos corpos pequenos os assombraria todas as vezes em que eles fossem tomar o devido repouso em seus travesseiros.
A beleza é criada quando o conceito transmite as qualidades da pessoa - força, criatividade, dinamismo, meiguice ou autocontrole, por exemplo - e quando a forma valoriza as características físicas positivas, expressa harmonia e é criada de acordo com os princípios de estética.