Arquivo da tag: domingo

Tempos difíceis

Dá pra perceber quando serão tempos difíceis quando nem a luz do dia aparece na minha cama pra me acordar, exceto o lustre que cai próximo da cabeça (poxa, até senti um caco em minha língua). E você ri do cabelo que nem penteei ainda.

Tá dando tudo errado. Eu rolei da cama e caí ali no chão, quase me corto com o resto do lustre espatifado. Solto um gemido de ‘me deixe aqui no chão’ e fico ali esfregando a cara no piso gelado. Nem era pra eu ter saído da cama. E você ri da minha falta de coragem.

Serão tempos difíceis, tempos pelos quais nem me atrevo a lutar, tempos em que até o banho vira sofrimento (sério, você não ia nem querer sentir meu cheiro), tempos em que minha ansiedade por fazer algo direito mais ataca. O coração até palpita mais rápido que eu mesmo (tá, eu sou apenas uma lesma imóvel no quarto). E você fica aí rindo da minha falta de mobilidade.

Eu me rastejo até o outro quarto, pego minhas baquetas, bato com força na minha bateria, mas o barulho (como os próprios vizinhos chamam) nem levanta meu astral. Depois jogo uma delas na parede que ricocheteia para minha testa (imagina se pega no olho). E aí o prato cai na minha perna e meus olhos reviram de dor (agora tenho que voltar ao outro quarto pra vestir uma calça que esconda o roxo). E você fica aí rindo quando eu apanho.

A perna mancado, a outra arrastando e eu nem sei como a falta de ânimo me fez levar até a cozinha. Faço meu ovo frito, meu bacon frito, minhas batatinhas fritas (meu café muito bem saudável, aceita?) e meu refrigerante zero (não quero engordar), mas nem elas saciam minha fome. E você ri da minha falta de apetite. Talvez uma maçã… não, esqueça! Isso não faz bem à saúde.

Na parede da sala, minhas fotos de 6 anos atrás parecem tão felizes, de uma jovem loira (magra, olhos azuis, sorriso ardente, linda e muito humilde) que conquistou o mundo e que agora não é capaz nem de pegar o controle da própria tv de led que comprou de seu intocável salário. O DVD cheio de poeira (quem é que ainda usa isso?) e um filme que nunca vi (Norris, é você?). E você ri da minha falta de entretenimento (e, talvez, da modéstia que ficou lá no passado).

Sinceramente, eu até ia contar mais do meu dia, mas acabei pegando no sono de novo, deitada no sofá. Tempos difíceis essas manhãs de domingos. Você fica aí rindo de mim só porque nos divertimos ontem a noite e hoje eu só tô o porre (opa!). Vai lá, chama seus amigos para rirem de mim, eu nem ligo mesmo… (amanhã já tô de boa!).

Foto de kira schwarz no Pexels

Que seja bom pra nós

Algo vem me despertar de um sonho bom que tive contigo. Olho para minha cama gigante e passo a mão num lençol frio e amarrotado. Meus olhos vão se abrindo lentamente à sua procura. Ao vencer a preguiça, finalmente, olho para o lado e me encontro sozinho, com os pés gelados. O cobertor está jogado no chão e lá fora chove. Levanto-me, vou à janela e vejo as gotas de orvalho escorregar pela vidraça. Ponho a mão e meu rosto contra aquela parede transparente que me separa do exterior de minha habitação. Minha mente viaja por um instante. Não, eu não devo partir.

Talvez fosse esta mais uma história de solidão, mas meu olfato sente o doce odor de um café sendo preparado. Meu sorriso se reflete naquela janela e o calor abraça meu corpo. Ouço gavetas se abrindo e talheres tilintando ao longe. Saio do quarto e fico ali, à espreita, observando quem abraçou minha solidão. Sorrio novamente, e, dessa vez, a imagem de alguém sorrindo reflete em meu coração. O mesmo sorriso que me despertou de uma lágrima, vestido com tão poucos trajes, preparando aquela bebida escura e amarga.

Devagar, me aproximo. Envolvendo aquele corpo num abraço, enquanto beijo sua nuca. Recebo novamente seu sorriso enquanto uma torrada nos é preparada. O silêncio não foi quebrado. O que nem era preciso, pois nossas almas se conectavam ali e um sabia o que no outro faltava.

E eu fiquei ali, sentindo seu cheiro, me perdendo em meus pensamentos, quando ainda éramos isolados pelo mundo. Você ali, sob o sol escaldante, o rosto sujo e o corpo suado e marcado pelas mentiras de quem um dia prometeu ser. Suas asas caídas e feridas não te permitiam mais voar.

Eu, em minha bondade, sentei-me ao seu lado e lhe disse algumas palavras. Alguma luz em mim me fez tocar seu coração. E você apenas me ouviu, com sua paciência. Eu nem sabia porque estava dizendo aquilo, mas sabia que era algo que você precisava ouvir. Pela primeira vez, você entendeu que sua asa quebrada não era sua culpa. E seu coração, tão quieto, me agradeceu.

Mas antes que seus lábios pudessem se mover, eu já estava de pé, caminhando para longe. Você, com o dom que alguém jamais teve, me viu de mãos dadas com minha solidão.

E você não me deixou partir.

Levantando-se em sua paz renovada, seguiu-me, cuidando de mim por alguns instantes. Quando me dei conta, estávamos frente ao outro, trocando um olhar sereno. E, no meio da multidão, naquela avenida barulhenta e lotada por pessoas sem cor, se fez nosso primeiro abraço. O que era breve, nos pareceu eterno.

Tomamos um café, trocamos nossos telefone, jantamos juntos. Dançamos muito naquela noite. Nunca mais nos separamos. Meu pensamento retorna, mas meu corpo continua ali, parado, sentindo seu cheiro e seu sorriso.

Vamos para a mesa de café e nos sentamos. “Como foi seu dia?” quebra nosso gelo. A conversa era animada e a refeição estava deliciosa. Nossas mãos esquerdas, onde reluz um pequeno aro dourado, se encontram. Se o tempo se abrir, será um belo dia para um passeio no parque.

Algo me veio despertar naquela manhã fria de domingo. Eu estava só na minha cama gigante e amarrotada. Procurei por você e não te encontrei. Mas você estava ali, na cozinha, preparando nossa primeira refeição. Não, não mais havia solidão. O que havia era apenas o caminho que nós dois escolhemos ser.