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Crônica de uma vovó streamer

Dona Mariquinha não pode mais sair de casa. Ela é do grupo de risco e dizem que algo perigoso a espera lá fora. Ela está aposentada, mas complementa sua renda fazendo capas de crochet para seus vizinhos. Sentindo-se impossibilitada por tal, enquanto balança em sua cadeira de balanços, ela decide fazer um suquinho de laranja. Ao olhar para o lado, se depara com um velho companheiro: seu super nintendo está ali do lado há um tempo.

Ela o conecta na TV. Está funcionando perfeitamente. Na tela de seleção, escolhe Syndel, que paralisa seus inimigos com um grito. Aos poucos, vai subindo a torre do castelo até chegar à Shao Kahn. Sem muitas dificuldades, zera seu jogo favorito mais uma vez. Comemora, faz um bolos, uns biscoitos, mas… se depara com algo inusitado. Com tanta quitanda deliciosa à mesa, resta saber com quem irá compartilhar. Sim, a solidão acabava de bater.

Ela não pode mais sair nem pra ver os vizinhos, então decide navegar na internet e descobre que muitas pessoas estavam trancadas em casa. Por isso, eles escolheram compartilhar suas jogatinas de forma on-line. Mariquinha começa a pesquisar os equiparatos para fazer o mesmo. Tira um pouco da sua poupança e compra uma placa de captura, compra um computador um pouco mais potente, um microfone, uma webcam e até um ring light. Expert nos equipamentos eletrônicos, monta tudo perfeitamente. Sua internet passa de 10Mbps para 100Mbps, com 50Mbps de upload, o que pra ela já é suficiente.

Então, ela liga e divulga sua stream entre os mais jovens. Aos poucos, vai sendo conhecida como a vovó do Mortal Kombat, mesmo que ela também joguei outros jogos. E, de vez em quando, ensina o pessoal a fazer uns biscoitinhos ou um pouco do seu crochet. Ela percebe que pode fazer lives de assuntos variados, não só de games, e que seu carisma acaba trazendo mais e mais pessoas que, se a princípio, só queriam vê-la jogando, hoje querem fazer parte da vida dela.

E muita gente gosta de vê-la. Dona Mariquinha, ou melhor, Vovó Mariquinha agora possuía muitos e muitos netos. Era muito aclamada por seu público. Em seu próprio quarto, se diverte, conversa, ri, faz amigos e todo mundo se despede da live já ansioso para a próxima. Ela também participa da live de outras pessoas e conta de forma bondosa como ela começou a fazer suas lives. “Para não me sentir só”, ela sempre respondia. E, hoje, possui uma legião de fãs.

Agora, o sonho de Vovó Mariquinha era ir pra um desses eventos presenciais de games, para encontrar sua nova família. Mas deve ser tanta gente que talvez uns poucos dias não seja suficiente para poder compartilhar todo esse carinho que ela aprendeu a receber frente a uma tela de TV.

Foto de Tima Miroshnichenko no Pexels

O romance de antigamente

Família reunida no churrasco. Papai assando aquela carne deliciosa, enquanto mamãe preparava a mandioca e o molho a campanha. Enquanto curtíamos o violão de nosso primo cantor e esperávamos por aquele pão de alho quentinho, conversávamos animados ao redor da mesa.

Depois de meu pai ter dado um susto no gato que havia derrubado as panelas de mamãe, muitos começaram a falar como era o relacionamento de cada um, quando resolvi perguntar à vovó como ela conheceu meu, hoje falecido, avó. Então, ela começou a contar.

“Nós vivíamos numa cidade pequena, onde nossa única diversão era dar voltas e voltar pela praça do centro. Não havia outro lugar que ficasse cheio na cidade. Na verdade, não havia outros lugares na cidade. A iluminação daquela praça era bonita, a fonte ainda funcionava e a estátua e as paredes não eram pichadas. Eu namorava Genóbio, um moço bonito que era muito paquerado pelas moças”.

“Gente, vocês viram o tanto que a Tereza engordou?”

PLOFT! Este foi o barulho da cara de minha prima levando um tomate pesado, após ter interrompido minha avó, sendo atirado por alguém na mesa (que ninguém sabia ao certo quem era).

– Yes! – comemorei baixinho, pra ninguém perceber que havia sido eu.

Após o olhar de recriminação de minha avó, seguido de uma risada alta, acompanhado da gargalhada de todos que estavam na mesa, vovó voltou a contar, de forma séria, sua história.

“Então, um belo dia, resolvi fazer vai-e-vem na praça. Vai-e-vem era quando todas as garotas do colégio desciam a rua, enquanto todos os garotos ficavam nos olhando nas calçadas, pensando quem eles gostariam de namorar. Menina, desce dessa mesa que você vai cair…”

Uma de nossas primas crianças estava dançando funk sobre a mesa, sem ao menos ter música. Puxamos a pobre garota de forma que ela caísse no chão.

“Então, seu avô, que era muito bonito, veio falar comigo, perguntando se eu queria tomar um sorvete na praça. Dias depois, Genóbio, com uma voz fina, que engrossava e depois afinava, veio chorando para meu lado:

– Você gosta dele! Você vai se casar com ele!

– Claro que não! De onde você tirou isso?

Olhei Genóbio de cima a baixo e vi como ele era feio e entendi porque nenhuma garota queria ele”.

Após ela dizer isso, todos na mesa ficaram assim:

Gringos 'roubam' meme da vilã Nazaré Tedesco e Twitter brasileiro ...

Inclusive a própria Nazaré, que não parava de ouvir a minha avó.

“Seu avô e eu começamos a namorar, mas escondidos, pois o pai dele não gostava de mim, pois eu era pobre e o pai dele achava que a pobreza era lixo. Eu era uma simples empregada doméstica, nos meus 17 anos. Mesmo assim, seu avô não desistiu de mim”.

Então, meu primo puxou o violão e começou a cantar:

Todos ali na mesa cantaram com ele. Continuamos a comer carne, comentando a história da vovó e como Genóbio estava certo, visto que ela se casou com meu avô, dois anos após começarem a namorar. Então, surgiu uma dúvida na mesa.

– O que aconteceu com Genóbio?

– Quem? – Minha avó perguntou.

– Genóbio, o cara que a senhora dispensou?

– Quem é Genóbio? De quem vocês estão falando?

E foi assim que jamais soubemos o destino do pobre Genóbio.